Leo levantou, apertou o botão do ônibus e desceu. Por alguns minutos ele ficou parado em frente a escola. Caminhou até a esquina e olhou para o campinho, onde as crianças do bairro brincavam durante todo o dia. Agora, aquela hora, o lugar estava vazio.
Ele tinha descido uma quadra antes. Desceu na parada errada pela primeira vez na vida. Viu o ônibus dobrar a esquina e se afastar, sem deixar ele no lugar de costume e ficou ali imóvel com cara de tacho. Tirou a máscara do rosto, guardou no bolso do casaco e respirou fundo antes de caminhar na direção de sua casa.
Quando ele chegou, sua mãe estava estudando na mesa da cozinha. A TV ligada no Jornal da Globo produzia um som de fundo tão entorpecente que era quase calmo.
— Tu demorou. — Ela disse.
Leo deixou a mochila sobre uma das cadeiras da mesa de quatro lugares. Depois de passar a noite inteira fazendo lanche, ele estava morrendo de fome. Na geladeira, encontrou um pote com macarrão e colocou no micro-ondas.
Ela deve ter ouvido o ônibus cruzar a rua e calculado o tempo que levou para Leo chegar em casa.
— Eu desci na parada errada. Lá na escolinha.
Ela ergueu uma sobrancelha para Leo. Ele deu de ombros. Também não sabe que espécie de lapso fez ele descer no lugar errado, sendo que pelos últimos vinte anos ele sempre desceu no mesmo lugar.
— Tu nem sabe, o Pietro vai casar. — Sua mãe anuncia, e Leo quase engasga no macarrão.
Leo senta à mesa com ela. Quase todo o espaço está ocupado pela apostila do curso de boas práticas de manipulação de alimentos, além de seu caderno e um estojo do Batman que foi de Leo.
— Bah, coitada da Kamyla. — Ele disse de boca cheia, o que fez sua mãe dar um sorrisinho.
— A festa vai ser lá em Santa Maria, naquele casarão dos avós dela.
— Quando?
Ela puxou o celular de algum bolso em seu casaco e pareceu checar a informação.
— Teu irmão disse que deve ser em janeiro, depois da formatura dela.
Leo pensou em Pietro e Kamyla. Sabia que o irmão provavelmente não o convidaria para ser padrinho, já que bem no começo do relacionamento deles Leo o aconselhou fortemente a largar Kamyla.
— Eu sei no que tu tá pensando — disse a mãe.
— Não sabe não.
Ela largou a caneta e olhou fixamente nos olhos de Leo. Ele se levantou e foi lavar o pote com o macarrão.
— É só tu pedir desculpas.
— Mas eu não tava errado, ué. — Ele disse, e buscou o rosto da mãe pelo olhar de censura que já estava lá. — Quer dizer, agora eu tô, mas na época eu não tava.
Leo conseguia entender porque pedir desculpas poderia ajudar. O tempo mostrou que ele estava errado sobre Kamyla e sobre o relacionamento deles, mas ele não tinha como saber disso na época e só disse aquelas coisas porque se preocupava com Pietro Ele sabe que se tentar pedir desculpas vai ficar tudo mais estranho. Como a mãe não diz mais nada, Leo decide mudar um pouco de assunto.
— Bom, já que ele não vai voltar mesmo agora, posso tirar o beliche do meu quarto?
— Não, senhor. Aquele beliche é meu, eu comprei. Quando tu for embora ele fica comigo. — Ela disse e Leo virou a cabeça para olhar a mãe, que estava guardando seu material. — Por quê? Tu não vai te casar e ir embora?
Leo ia responder “eu não, sai fora”, mas ele tem usado essa mesma resposta desde os doze anos e acha que não está mais colando.
— Sei lá, mãe. Essas conversas agora? Vamo voltar a falar do Pietro.
Mas desde que Pietro passou num concurso e se mudou, ele não estava mais na lista de preocupações de sua mãe.
— Eu só tô dizendo que não faz mal ter um plano pro futuro, né?
— Mas eu tenho plano pro futuro. Eu tô fazendo o que na UNIPAMPA todo dia?
Ela não respondeu, e Leo resistiu ao impulso de seguir na discussão. Principalmente porque não queria que ela perguntasse quando ele ia se formar, se é que ia, e também não queria ouvir de novo sobre os quase três mil reais que ela gastou em um técnico em enfermagem que ele não terminou.
Leo se levantou, tirou o avental da mochila e pendurou no gancho atrás da porta da cozinha. Deu um beijo na bochecha da mãe e foi para o quarto, se apertando todo para entrar no beliche de baixo. Não tinha a menor possibilidade de ele dormir agora.
Não tinha nenhuma conta chamada “Kaio Pinto” no Instagram que fosse a dele. Nenhum “Kaio Fernandes”, também. Nenhum Kaio P, nenhum Kaio F. Leo entrou no perfil de todos os alunos de psicologia que ele conhecia, mas na aba de seguidores nenhum deles parecia ser Kaio. Talvez ele não tenha Instagram, ele tem cara de quem tem Twitter, mas aí vai ser impossível de achar ele sem perguntar; pensou Leo.
Já estava quase desistindo, era muito tarde da madrugada e precisava dormir logo, tinha aula de manhã cedo. Uma certa sensação de urgência não deixava ele largar o celular.
E então, quase como um milagre, uma notificação de novo seguidor chegou, o nome de usuário era “xchainsonmex”. Leo ficou confuso, foi dar uma olhada no perfil, por um momento pensou que era alguém aleatório, mas então reconheceu Kaio em uma foto tremida. Seguiu de volta imediatamente.
Recebeu uma notificação de mensagem.
Kaio: E aí?
Leo: Como que tu me achou? Tava passando um trabalhão pra achar teu perfil
Kaio: Entrei no perfil do Prado Lanches e te procurei nos seguidores
Leo: Ah, faz sentido
Kaio: Foi tu que faz a identidade visual das coisas do trailer?
Leo: Não, foi minha mãe, fez tudo sozinha, não me deixou mexer em nada
Kaio: Eu achei muito feio, desculpa
Leo deu uma risada sozinho no escuro do quarto.
Leo: Não tem problema, é feio mesmo
***
Kaio estava procurando na internet alguma calça preta que fosse suficientemente preta e suficientemente apertada sem ser nem tão preta, nem tão apertada, quando seu celular tocou.
Foi só quando, do outro lado da linha, Leo disse “Alô, Kaio?” que ele se deu conta que havia atendido. Por quê? Ele nem sabia o que responder.
— Kaio? Tá aí?
— Hum, alô?
— Opa, tu tá aí. Olha, eu tenho uma dúvida.
Tinha barulho atrás dele, gente falando e carros cruzando. Talvez ele estivesse trabalhando.
— Ok…
— Qual o nome daquele psicólogo que dizia que todo mundo quer comer a própria mãe?
— Freud? Ele era psiquiatra.
— Isso! Obrigado.
E desligou.
Leo saiu da aula bem mais tarde do que esperava, precisava estar no trailer em menos de meia hora para que a mãe não se atrasasse para o curso. Saiu do bloco quatro xingando mentalmente o professor, os colegas que se estenderam na apresentação de trabalho, a distância entre a UNIPAMPA e a URCAMP e todos os outros empecilhos do dia. No saguão, se recostou no balcão da portaria e começou a debater as possibilidades de como chegar lá o mais rápido possível com o porteiro Witor.
No desespero, decidiu mandar uma mensagem para Kaio.
Leo: Opa! Tem como tu me dar uma carona da UNIPAMPA até a URCAMP?
Kaio: Meio do nada esse pedido, mas posso sim
Leo: Obrigado! Tá salvando minha vida
Kaio: Dramático… Daqui a pouco tô chegando aí
— E aí, resolveu? — Witor perguntou.
— Sim, um amigo tá vindo me buscar.
— O amigo, aquele amigo? O emo?
Leo queria nunca ter falado para Witor sobre Kaio. Na verdade, ele queria ter sido capaz de não contar a ninguém sobre Kaio, mas parecia que desde o dia da chuva, que agora fazia mais de mês, ele era incapaz de conversar sobre outro tópico. A cada dez frases que saiam de sua boca, seis começavam com “não, porque o Kaio…”, “vocês sabiam que o Kaio…”, e por aí vai.
— Como tu sabe que é ele? Podia ser outro.
— Acho difícil. Não conheço um amigo teu que tenha carro, sem ser esse. Os outros todos pegam ônibus pra cá.
Leo tirou a mochila das costas e se sentou na cadeira ao lado do balcão. Witor ficava olhando para ele com aquela cara de quem conhece todos os alunos sem precisar que eles contem muita coisa. Os dois ficaram vendo o parado movimento da tarde no saguão até que Leo viu Kaio entrando com o carro na universidade (e, aliás, entrando pela saída, na contramão do estacionamento).
— Um HB20? Sério? — Witor perguntou.
— Pois é, difícil de acreditar né?
Kaio parou o carro bem de frente para a entrada da universidade. Leo nunca tinha visto ele de camiseta de mangas curtas. O clima naquele começo de agosto ainda não tinha permitido sair só de camiseta, mas ali ele estava, e Leo parou por um momento observando a figura de Kaio através do para-brisa do carro.
Quando acordou do susto, Leo correu até o carro, abriu a porta e entrou como se já estivesse acostumado, como se já tivesse pegado carona com Kaio outras vezes. Antes de falar qualquer coisa, sentiu um cheiro tão bom que não sabia se era Kaio ou o carro. Sentiu também que estava mais quente no carro do que na rua. Só não sabia se era o carro que estava quente ou ele mesmo.
— Tá tudo bem? — Kaio perguntou. As sobrancelhas loiras estavam franzidas. Ele encarou Leo, procurando alguma resposta em seu rosto.
— Tá sim.
Nem notou que já estavam passando do portão da faculdade. Kaio dirigia concentrado, ou talvez fosse nervosismo. Ele trocou quatro vezes de marcha até chegar na Avenida Santa Tecla, e só acertou duas de primeira. Tocava uma música no rádio, Leo não conhecia.
— Te pago com um pancho — disse assim que conseguiu raciocinar.
— Não precisa me pagar, mas eu aceito.
— Tava fazendo alguma coisa? Te atrapalhei?
— Tava na minha meditação diária sobre ir ou não para a aula — disse. — Inclusive, ainda não decidi.
Leo não respondeu, ele não estava em seu funcionamento normal, se perdeu um pouco mais com a imagem de Kaio, como a camiseta branca e larga caía bem nele, como a luz do sol poente o favorecia.
Kaio percebeu os olhares, não tinha como não perceber, Leo não sabia disfarçar. Resolveu falar alguma coisa, não sabia lidar com aquele tipo de silêncio como sabia lidar com os outros.
— Já sei que teu “Leo” não é de “Leonardo” — começou a falar. — Mas, afinal, é de quê? Leonel?
— Não tenho 60 anos pra me chamar “Leonel”.
— Leôncio, então? — tentou mais uma vez. — Leônidas?
— Piorou.
— Leorio? — Não podia perder a chance de fazer uma piada de otakinho.
Leo riu.
— Se eu sou o Leorio, tu é quem? O Kurapika? — Leo entrou na brincadeira.
— Tá querendo que eu cure a tua? — respondeu automaticamente, sem pensar antes.
Kaio sentiu o rosto aquecer, ficou nervoso, quase bateu o carro porque esqueceu de parar na rotatória. Torceu para que Leo não tivesse percebido. Mesmo sendo só uma piada, ele poderia interpretar como uma proposta. E será que não era mesmo uma proposta? Ainda não tinha tido coragem de ter uma conversa consigo mesmo sobre seus sentimentos sobre Leo.
No outro banco, Leo estava tão nervoso quanto. Não sabia como responder, se deveria retrucar com outra piada ou se deveria dizer apenas “quero”. Acabou ficando em silêncio.
Kaio sentia que Leo não ter respondido era quase pior do que qualquer coisa que ele poderia ter respondido. Será que ele tinha deixado as coisas estranhas? Ele não queria parecer um cara esquisito que dá caronas em troca de favores sexuais.
Ficaram em silêncio até o fim do caminho, só se podia ouvir a música que saía dos alto-falantes do carro e os barulhos das ruas. Kaio nunca ficou tão aliviado por ter chegado até a URCAMP sem bater o carro.
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