— Vou querer um pancho completo. — Houve uma pausa, tomava coragem enquanto olhava para o cardápio vermelho e amarelo mal diagramado na lateral do trailer — Sem mostarda.
— Mais alguma coisa? — O atendente repetiu o discurso de sempre automaticamente.
Kaio negou com a cabeça e se atirou em uma das cadeiras de plástico dispostas na frente do trailer. Encarou o prédio da universidade que estudava, não queria voltar para a aula, na verdade, nunca quis estar ali, muito menos estudar psicologia.
Tinha feito dezoito anos há pouco tempo. Ainda não tinha se acostumado com a idade. Servia nele como uma camiseta comprada um ou dois números maiores, e ele esperava que até o fim do ano já tivesse crescido o suficiente para caber nos espaços folgados. Às vezes repetia o número na cabeça, como um mantra, ou como se estivesse ensaiando uma resposta que ninguém havia perguntado.
A voz desafinada do atendente puxou Kaio de volta para a realidade. Só agora notou que tinha música tocando o tempo todo. Voltou o olhar para o trailer, reparou em uma caixinha de som em cima da geladeira, era provavelmente falsificada, não que isso importasse. O atendente parecia saber a letra de cor. Kaio conhecia a música também, apesar de não tão bem, a mãe costumava ouvir Marília Mendonça.
— Bem pior que eu… você… — ele continuava a cantar, sem perceber que Kaio o observava.
Ele quase dançava no espaço apertado do trailer, Kaio se segurou para não rir. Até que ele é bem bonitinho; ele pensou.
— Tá pronto! — anunciou o atendente. — É pra comer aqui ou pra levar?
— É pra comer aqui. — Kaio respondeu se levantando, as correntes da calça faziam um barulhinho quando ele se movia. — Quanto que deu?
— Oito pila — respondeu, e deu para ver, apesar da máscara, que ele sorria.
Enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro, felizmente tinham sobrado alguns trocados depois de ter comprado anéis naquela tarde, estava com preguiça de usar o PIX, como se fosse uma atividade muito difícil de ser executada. Entregou uma nota de dez reais para o atendente, que foi procurar troco. Aproveitou o momento para dar uma boa olhada nele, era bem mais alto que Kaio, a cabeça quase batia no teto do trailer obviamente feito para alguém mais baixo. Usava uma camiseta branca por baixo do avental amarelo onde estava escrito “Prado Lanches” em letras vermelhas cursivas muito feias.
— Teu troco — disse enquanto alcançava duas moedinhas de um real para Kaio.
Kaio se sentiu observado também, naqueles poucos segundos em que aceitou as moedas e guardou no bolso, mas resolveu ignorar e voltou a se sentar na cadeira de plástico.
Ninguém disse nada.
Teve a sensação novamente enquanto comia, e não foram poucas vezes. O atendente continuou seu trabalho ao som das músicas que tocavam em sua caixinha de som, mas, de vez em quando, também se sentia observado.
***
Segunda-feira, quatro de julho de dois mil e vinte e dois, Bagé, Rio Grande do Sul. Fazem agora sete graus célsius com sensação térmica de cinco. Você está acompanhando a rádio…
Kaio desligou o rádio, não conseguia fazer baliza com música. Estacionou com dificuldade na rua paralela ao mercado e ficou se perguntando se queria mesmo ir à aula ou não. Pensou em caminhar até o trailer de pancho, mas não tinha certeza se o atendente estaria hoje. Se fosse uma quarta, sim. Porque ele tinha descoberto que todas as quartas ele estava lá. Nos outros dias, era uma questão de sorte, às vezes Kaio chegava e encontrava uma mulher trabalhando, e nenhuma caixinha de som. Nesses dias, ele só pedia um lanche se estivesse com muita fome.
Fazia mais ou menos um mês desde a primeira vez que tinha comprado pancho naquele trailer. Nesse meio tempo, acabou virando quase um costume fugir da aula e matar tempo por lá. O atendente bonitinho tentava puxar assunto com Kaio, mas ele não sabia muito bem como lidar, acabava respondendo com palavras curtas ou só mexendo a cabeça. Gostava um pouco mais daquela situação toda do que conseguia admitir.
Decidiu ir. Não tinha comido nada o dia todo e estava começando a se achar insuportável. O frio intenso, o céu fechado, as ruas úmidas e o vento estavam começando a parecer um sinal do universo dizendo para ele não ir, o atendente não estaria lá.
Mas estava.
— Vou querer um…
— Pancho completo sem mostarda? — O atendente completou o pedido de sempre.
Kaio emitiu um som estranho. Não era uma palavra. Não era nem mesmo um “uhum”. Era um som. Demorou uns segundos até que ele processasse o que o atendente tinha dito.
— Vou considerar isso como um sim — disse o atendente. — Mais alguma coisa?
— Não, não. — Kaio se forçou a responder.
Ele se sentou na mesma cadeira de todas as outras vezes, aquela que ficava mais perto do trailer, quase junto ao meio-fio. A caixinha de som estava no mesmo lugar de todas as outras vezes, mas hoje estava desligada. Ele não sabia o que fazer com seus olhos, se olhava para o atendente, para o prédio cinza e laranja da universidade, para o cardápio mal diagramado ou pro concreto do chão.
— Tu tá bem? — O atendente perguntou.
— Não, não sei, talvez.
— Tu deu quase todas as respostas possíveis.
— É, menos o sim, porque o sim com certeza não.
Kaio olhou na direção do atendente. Ele estava em uma posição estranha, metade do corpo virado para a chapa do trailer, metade para o lado de fora. Tinha uma cara surpresa.
— Tô vendo, tu nunca tinha falado tanto, tô impressionado.
Como Kaio não respondeu, o atendente se obrigou a terminar o lanche sem dizer mais nada. O poste de luz que ficava atrás do trailer não estava funcionando, então a única luz naquela parte da rua era a do trailer, como se eles estivessem sentados sob um holofote. Quando o pancho ficou pronto, ele anunciou:
— Tá pronto! Vai comer aqui como sempre?
— Aham — soltou uma de suas respostas curtas costumeiras.
Enfiou a mão no bolso e lembrou que não pegou dinheiro antes de sair de casa.
— Vou pagar no PIX hoje — informou ao atendente.
— Que milagre! — pareceu que ia pegar alguma coisa e então desistiu. — Tô sem a maquininha hoje, faz o PIX para o número que tá no cardápio.
Kaio digitou a chave no aplicativo do banco e leu o nome que apareceu na tela, “Regina dos Santos Soares”, não prestou muita atenção nisso e virou o celular para o atendente.
— Tá certo? — pediu uma confirmação.
— Sim, é esse mesmo.
Kaio voltou a atenção para o celular para terminar a transferência.
— Aliás, Regina é minha mãe, meu nome é Leo — adicionou sem ninguém ter perguntado.
— Ah! Leonardo?
— Não, Leo.
Kaio franziu a testa e alcançou o celular para Leo para que ele pudesse ver o comprovante de pagamento. Segurando o aparelho, Leo riu, e Kaio fechou a cara.
— Tá rindo do quê? — perguntou um pouco indignado.
— Teu nome é Kaio Pinto? Sério? Tua mãe não gosta de ti?
— Talvez não, não é da tua conta. — Leo sentiu que aquela era uma resposta irritada, não uma brincadeira, e se arrependeu de ter aberto a boca.
Kaio voltou para sua cadeira de costume e começou a comer o lanche, com a cara emburrada de sempre, mas Leo não achou bonitinho como nas outras vezes. Ele não tinha certeza do que deveria achar. Resolveu tentar puxar outro assunto.
— Assistiu os episódios de Stranger Things que saíram na sexta? — perguntou torcendo pra que Kaio assistisse à série.
— Assisti sim — respondeu ainda estressado.
— Gostou?
— Não, achei terrível.
A possibilidade de reclamar da série pareceu animar Kaio, que começou a falar sem parar sobre furos de roteiros, teorias infundadas e personagens rasos. Quanto mais Leo falava sobre ter gostado, mais ele tentava contrariar.
Kaio não foi para a aula. Ele puxou a cadeira mais para perto do trailer, e ficava torcendo o pescoço para olhar Leo trabalhando. Por sua vez, Leo errou dois pedidos e atrasou três. Os dois conversaram por tempo suficiente para descobrirem coisas um sobre o outro. Kaio ficou sabendo que Leo estudava Línguas Adicionais na UNIPAMPA, que ele só trabalhava no trailer algumas noites, quando sua mãe não podia, e toda quarta porque ela fazia um curso oferecido pela prefeitura. Leo descobriu que Kaio faz aniversário em abril, que sua mãe era instrutora de pilates, que ele não gostava da faculdade nem do curso. Aprendeu que Kaio quase nunca olhava nos olhos dos outros quando falava, que tinha um piercing na sobrancelha, encoberto pela franja loira. Não, não é como se ele estivesse prestando mais atenção nele do que em seu trabalho, mas a montagem de panchos era automática e o rosto de Kaio era novo. E bem bonito.
Aquela noite passou mais rápido que todas as outras, quando perceberam já era hora de fechar o trailer e ir pra casa. Só foram perceber por conta dos pingos de chuva que começavam a cair bem lentamente, quase não era chuva.
— Tomara que não fique mais forte a chuva ou vou tomar um banho até o carro. — Kaio falou mais pra ele mesmo do que pra Leo. — Devia ter pego a merda do guarda-chuva!
— Tu tem um carro? Que chique — disse Leo fazendo uma careta fingindo estar chocado. — Eu vou de ônibus até o Prado.
Kaio não respondeu. Para a sua infelicidade maior, a chuva ficou mais forte e ele precisou se esconder no toldo do trailer enquanto Leo guardava as coisas. Os dois ficaram se estudando.
— Teu carro tá onde? De repente te dou uma carona de guarda-chuva. — Leo perguntou.
— Tá ali perto do mercado.
— Te levo até ali, então. — Leo comunicou. — Espera só eu fechar aqui.
Leo não sabia se fechava o trailer mais devagar ou mais rápido, queria conversar mais com Kaio, mas também não queria deixar ele ali pegando chuva. A chuva fez com que a temperatura caísse mais ainda. As ruas já não tinham muito movimento, mas agora que as aulas da noite na faculdade já haviam acabado e os alunos tinham se dispersado, a cidade parecia ainda mais vazia.
Kaio não disse nada quando Leo abriu o guarda-chuva e abriu espaço para que ele caminhasse ao seu lado. Ele não sabia o que pensar sobre esse guri loiro que aparecia toda vez que ele tinha que trabalhar no trailer. Não ajudava que Kaio era inconsistente. Todos os outros dias em que ele tentou conversar, Kaio reagiu com silêncio ou indiferença. Exceto por aquele momento, agora, que ninguém tinha como saber quanto tempo ia durar. Leo não tinha como saber qual seria a próxima reação dele.
O carro de Kaio era um HB20 branco. Quando ele apontou, Leo achou que ele estivesse brincando. Nunca um carro destoou tanto de seu dono.
— Não sabia que tu era uma loira odonto. — Leo brincou.
— Foi a minha mãe que escolheu, não tenho culpa — respondeu com mais sinceridade do que Leo esperava. — Na real, eu queria algum carro velho, mas ela só apareceu com esse um dia.
— É, tô vendo que ela realmente não gosta de ti.
Como quase de costume, Kaio respondeu com um barulhinho incompreensível. Leo deixou Kaio o mais perto possível do carro, se despediram de um jeito que pareceu insuficiente para os dois, mas nenhum deles sabia mais o que dizer ou fazer.
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