— Não estou com tempo para falar com você. Nem paciência.
Thereezee, ou qualquer outro nobre irritante, decerto teria uma embolia se me visse falando assim com o Príncipe-Regente.
Mas aturar Escórpio é o que menos preciso agora, quando meu interior ferve a indignação e sinto vontade de gritar.
— Não diria isso tão cedo. Especialmente aqui. — Ele não se move; o ombro direito apoiado numa das pilastra-estante a meio caminho da saída, segurando um livro botânico de cabeça para baixo. Os olhos escuros, porém, erguem-se para além de meus ombros, e então para os lados e para cima: apontando as estantes aos nossos lados e o mezanino. — E não quando quem mais tem a perder é você.
No tempo em que estive no gabinete, a biblioteca se esvaziou um pouco, mas ainda há uma ou outra cabeça visível, além dos guardas. E bem sei o quanto essa gente tem um ouvido afiado para escutar conversa alheia e uma boca rápida para espalhar tudo de forma distorcida pela corte.
O que é mais um ótimo motivo para ignorar Escórpio e sair daqui.
— Poupe seus enigmas e ameaças veladas para outra pessoa. Tenho mais o que fazer — bufo de exasperação.
Mal tenho tempo de me virar e dar dois passos.
Uma garra se fecha ao redor de meu pulso esquerdo e me puxa de volta, praticamente me arrastando para entre duas estantes. Tão rápido que não consigo reagir a tempo — e quando dou conta já estou ao lado do corredor, com Escórpio diante de mim.
O atordoamento se desvanece e inflama o borbulhar indignado em meu peito.
— Que inferno se passa na sua cabeça?! — sibilo, olhando rapidamente para os lados. Estamos num corredor mais estreito, que é caminho para as escadas circulares que levam ao mezanino. Se alguém passar por aqui…
— Tem algo que quero discutir com você.
Tento puxar o braço e fugir pela direita, mas ele segura com mais firmeza e apoia o outro braço na prateleira atrás de mim, fazendo uma cerca sem me tocar. Bufo exasperada.
— Pouco me importa. Não te-
— Não tem tempo? Está um pouco repetitiva hoje, não acha? — provoca, arqueando uma sobrancelha loira, num tom pouco mais escuro que a platina de seus cabelos encaracolados, mas que ainda assim parece sumir na pele tão branca. — Por acaso eu sei que está sem tempo. Não é hoje que anunciam seu noivado?
Escórpio ergue apenas uma ponta dos lábios, num arremedo de sorriso desdenhoso — o único tipo que ele tem.
Abro a boca e então torno a fechar, sem conseguir emitir qualquer resposta, a respiração suspensa. Por um segundo, o calor borbulhante é substituído por gelo, que se instaura em minha barriga. Não teria como… Ele também é príncipe. Mesmo que na época fosse o terceiro na linha de sucessão, ainda estava próximo demais da coroa — tanto que agora é o herdeiro, faltando poucas semanas para sua coroação.
A constatação me devolve o ar — embora a pedra de gelo no estômago permaneça. A impossibilidade de o noivo ser Escórpio, não muda que estou noiva sem saber de quem.
— Não vejo como isso pode ser da sua conta — retruco por fim, tão baixo quanto possível, verificando novamente os arredores.
Falar com Escórpio diante de todos, ciente que cada mínima atitude de animosidade será julgada, só não é pior do que ser flagrada conversando com ele aos cochichos entre duas estantes afastadas na biblioteca…
Só de imaginar a possibilidade de que possam espalhar que estou em algum tipo de relacionamento com Escórpio — ou mesmo a ideia de ter qualquer envolvimento com ele nesse aspecto — faz uma careta involuntária se formar. Há quem suspire por ele na corte e sonhe em ter sua atenção; mas, para mim, até imaginar ter algo com ele nesse sentido é apenas… não. O remoto grau de parentesco é apenas o menor dos problemas.
— E não é da minha conta mesmo. Não da forma que poderiam achar — ele diz, com sorriso enviesado se espalhando sem alcançar os olhos negros. — Tenho uma proposta a vo-
— E a resposta é não. Agora me deixe ir.
Novamente tento puxar o braço.
Sem sucesso.
Apesar de o aperto não ser tão forte ao ponto de machucar, a pele em meus pulsos é particularmente sensível e seu toque é desconfortável. Tal proximidade já seria irritante com qualquer pessoa; com Escórpio ganha o agravante de que, se não conseguir me libertar a tempo, novamente ele encontrará o gatilho que me faz revelar mais do que gostaria. O abismo de seus olhos parece capaz de puxar para a superfície e jogar na minha cara tudo aquilo que tento sufocar num porão mental… Como se encarasse um espelho.
— Não quer um escândalo que pode magoar seu noivinho justo no dia do noivado? Ou a preocupação é com aquele outro… como era mesmo o nome daquele seu namorado…?
— Pouco me importo com isso. Só sai de perto de mim! — retruco, tateando discretamente a estante atrás de mim.
— Não antes de escutar o que tenho a dizer.
Agarro a lombada dura de um livro mediano. Se for rápida o suficiente, talvez consiga acertar sua cara; mas provavelmente…
Isso só vai lhe trazer mais problemas
A intuição de bom-senso volta a soprar em meu ouvido, e bufo exasperada, abandonando o livro.
— Então pare de enrolar e fale essa merda de uma vez!
— Que linguajar mais apropriado para uma princesa. Se falar só um pouco mais alto, tenho certeza de que até quem está na cidade vai concordar.
Minha cabeça lateja com o sangue fervendo a indignação até virar raiva, tornando a respiração rasa. Não à toa o evitei a tarde inteira — ou melhor, a semana inteira; porque o infeliz fez questão de chegar mais cedo para meu aniversário, e ficou espreitando como assombração… esperando para se aproximar no pior momento.
— Se vai continuar nessa-
— Fuja comigo.
Me engasgo com as palavras.
— … o quê?
— Fuja comigo — Escórpio repete. O tom resoluto faz parecer um convite para algo tão simples quanto ir comer tortinhas na cidade.
E isso é tão…
Aperto os lábios, mas não adianta. A risada sobe incontrolável, reverberando por meu corpo. Viro o rosto, tampando a boca para não atrair qualquer cortesão zanzando pela biblioteca.
Fugir com Escórpio, francamente!
Nem meus pesadelos mais bizarros conseguem chegar a esse nível de absurdo aleatório.
— De onde… de onde tirou a ideia de que eu poderia, de alguma forma, aceitar isso? Não sabia que é dado a fazer planos românticos e estúpidos assim — digo, entre o riso abafado. — Desde quando-
— Não há nada de romântico nisso — retruca, numa carranca de desgosto, como se a mera sugestão fosse ofensiva. — Mas temos objetivos em comum, então nos unir seria mais prático para conseguir.
Interrompo a risada, erguendo as sobrancelhas. Essa é nova.
— E posso saber que objetivos em comum seriam esses?
Escórpio ajeita a postura, enfim me soltando para poder cruzar os braços fortes. A camisa roxa e o colete preto o fazem parecer ainda mais pálido, como um fantasma.
— Nunca quis ser rainha, não é? Já deixou isso claro muitas vezes. Eu também não. Não deveria ser nenhum de nós dois nessa posição, mas acabou acontecendo. E a cada dia está mais perto de ser irreversível.
— Já é irreversível — as palavras escapam num murmúrio.
Ele não me segura mais, e ainda assim… não consigo me mover, os pés enraizaram no mármore frio. Até o plano de ir encontrar mamãe para exigir respostas perdeu a urgência.
— Não, não é. Se formos embora antes…
— E desde quando você não quer ser rei? Me lembro muito bem de tudo o que disse daquela vez… dizendo que tínhamos que ser próximos e se vangloriando por-
— Quando eu tinha 12 anos? — devolve, franzindo a testa. — Talvez naquela época tenha parecido… Como não iria? Um plano dá errado, mas uma coroa cai no seu colo. Faz um garoto se sentir invencível, parece um sonho… mas é só um piscar para perceber que na verdade entrou num pesadelo.
Enquanto Escórpio tem uma facilidade absurda de arrancar pensamentos de mim, é raro que deixe escapar algo de si. Não sei como reagir a essa ponta de sinceridade que escorre de suas palavras amarguradas, como resquícios de veneno.
— E qual é seu grande plano? Ir viver nas montanhas do extremo norte pastoreando ovelhas? Sabe que ainda seríamos encontrados… Solluaria não é tão grande — desdenho, na falta de algo melhor a dizer.
Escórpio inclina a cabeça, e a ponta do frio sorriso torna a surgir, presunçoso.
— Está se incluindo nos planos. Mudou de ideia?
— Claro que não — bufo irritada. — Só estou lhe mostrando quão absurda é essa ideia. E que não tem qualquer chance de dar certo. Seria um esforço inútil, uma vida fugindo e, ainda assim, seria encontrado em pouco tempo.
— Fala como quem já pensou nisso tudo antes.
— …
O irritante sorrisinho desdenhoso aumenta ao ler a confirmação estampada na minha cara, e sinto vontade de me morder de frustração.
O sorriso aumenta ao acrescentar:
— E eu nunca disse que pretendo ficar na Ilha.
Meus olhos se arregalam e balanço a cabeça em incredulidade.
— Isso é loucura.
A Ilha é cercada por uma barreira de pedras afiadas, algumas tão grandes que se pode ver na superfície do mar; sem mencionar os redemoinhos d'água. Há quem diga que, da praia de Bérthia, é possível ver à distância um ou outro casco de navio preso e encontrar restos que chegam na areia. Até há, na Ilha, aqueles com conhecimento para passar entre tais perigos e voltar com vida — exploradores e comerciantes, que trazem matérias-primas e conhecimentos científicos. É tão arriscado que são poucos a fazer a viagem, e ainda menos a levarem civis.
Conseguir o transporte e passar pela viagem é só o menor dos problemas, claro.
Se arriscar numa viagem insana é melhor do que ser coroado?
— E então? Ainda acha que vamos ser encontrados tão rápido?
— Não pode estar realmente falando sério — balbucio, ainda perplexa. — Não acha mesmo que irei-
— Não sou ingênuo para imaginar que aceitaria de primeira, por isso não vou considerar sua resposta de agora — declara, sem abalar a confiança ou o sorriso frio.
Isso torna a inflamar minha irritação.
— Pois deveria. Não irei a qualquer lugar com você.
Escórpio se aproxima de abrupto, os braços formando uma prisão sem escapatória. Embora não me toque, o perfume enjoativo e almiscarado torna a proximidade sufocante.
— Por quê? Por que é tão covarde e se recusa a encarar a verdade? Somos parecidos e sabe disso. Se juntar a mim é a única chance que tem de seguir uma vida diferente, escolhida por você… longe da maldição da Coroa. O que a prende nesse lugar, afinal? Alexander não está mais aqui, aquele outro garoto estúpido também não… nem é tão próxima da sua família. — Ele para um segundo e faz um muxoxo irônico. — Ou vai me dizer que está ansiosa para passar o resto da vida se sacrificando pelos outros enquanto está presa a um casamento com alguém que foi escolhido para você só porque um bando de reis que agora não passam de pó colocaram num papel que esse era o melhor caminho para preservar a paz?
Aperto os lábios, novamente incapaz de encontrar qualquer resposta. Nem mesmo uma ruim. A discussão com papai ainda ronda minha cabeça, vespas furiosas só esperando a oportunidade para ferroar — e as palavras de Escórpio se une a elas, atiçando mais.
Sabendo que não tenho como responder a isso, Escórpio retrocede uns passos. Na face, a presunção da vitória.
— Apenas pense nisso… e no que vai significar para você. Vamos ver se sua resposta continuará sendo “não” até o fim dessa noite, priminha — diz, já se afastando pelo corredor estreito. — E esse noivado é só o começo.
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