A caverna cheirava a estrume e sangue. O chão era um tapete de ossos com alguns corpos de crianças em decomposição. Sourukira dormia. Pude ver duas mulheres chorando baixinho. Eram reféns da criatura.
— Emiquinha, posso tirar isso dos meus olhos? — perguntou o Isniffi, mexendo na venda que coloquei em seus olhos para que ele não visse essas bizarrices.
— Isniffi, você promete que não fará barulho? — eu disse puxando-o para meus braços.
— Esse cheiro está muito ruim! — reclamou.
— Segure nessa mão de pedra. Fique aqui até eu voltar — falei deixando o pequeno ao lado de uma deusa protetora roubada de algum vilarejo.
A respiração da criatura era forte e amedrontadora. As mulheres olharam-me com uma expressão de terror. Uma delas fez sinal para que eu me afastasse. Eu também estava com medo, porém se não enfrentasse aquilo, provavelmente nunca conseguiria fazer jus ao poder que me foi dado.
— Se eu fosse você, mulher virgem, voltava para casa — afirmou a criatura ainda com os olhos fechados.
— Como você conseguiu sentir minha presença? — perguntei.
— Seu cheiro é de uma mulher que não sente atração carnal por pessoas, algo raro nessas terras — respondeu o urso com palavras que eu julgava que ninguém sabia.
— Como um cheiro pode dizer algo sobre alguém?
— Nunca ouviu falar do olfato divino? O ganhei há muito tempo, quando devorei um deus que visitou nosso mundo ao lado dos seus carrascos.
— Então você sabe porque estou aqui?
—A filha do imperador deseja mostrar à sua mãe como uma mulher deve amar o seu filho, não importando sua aparência. Com minha ajuda, você conseguirá o favor de seu pai e o respeito do seu povo.
— Mentira! — gritei
— Estou mentindo em quê? — rosnou.
— No começo eu queria fazer isso para provar o meu argumento, mas no momento que vi um homem se sacrificando pelo seu filho, percebi que deveria fazer o mesmo. Não faço isso pela minha mãe, mas pelo meu filho… Sua cabeça garantirá que ele viva comigo no conforto do castelo.
— Você é mais esperta do que julguei ser. Somos iguais, isso eu admito.
— Não sou igual a você — respondi.
O urso se levantou. Ele era muito maior do que eu estava imaginando. Peludo, com dentes maiores que uma faca, braços grandes e cicatrizes espalhadas pela barriga. As mulheres correram, acreditando que eu seria o novo brinquedo, mas com uma só patada, elas foram feitas em pedaços. Tentei me afastar. Uma pedra me fez cair em cima da caveira de um guerreiro que tentou a sorte contra essa fera.
— Sinto ódio, violência e fúria em sua alma. Você é igual a mim, porém antes não tinha o poder para manifestar sua personalidade. Agora você o tem e o usará para o bem do seu filho, satisfazendo sua vontade de sangue.
— Você está enganado, tem certeza que não sentiu o cheiro de outra pessoa nas minhas roupas?
— Trucido por que gosto. Essas duas mulheres que assassinei eram canibais. Sozinhas, mataram todas essas crianças que você está vendo nessa caverna.
— Não foi você que fez isso? — perguntei.
— Todos que matei eram criminosos nojentos, nunca levantei a mão contra inocentes, mesmo o seu imperador falando o oposto. Fiquei meses caçando cervos na floresta até que decidi voltar à minha caverna para hibernar, contudo, quando cheguei, encontrei essas crianças mortas. Cacei seus assassinos até chegar nessas duas mulheres da alta sociedade. Fiz o que achava certo e a trouxe para as exterminar quando acordasse.
— Eu não posso acreditar nas suas palavras! — gritei.
— Estou cansado de viver sendo perseguido por esses bastardos imundos! Quero morrer como meus ancestrais, não viver a eternidade lutando contra os humanos.
O urso andou até mim. Pensei que seria meu fim. Ele abriu os lábios, revelando uma faca cravada no céu da sua boca.
— Pegue a faca! — disse a voz do urso em minha cabeça.
Puxei ela com toda minha força. Sangue escorreu pelos meus dedos. O urso esticou seu pescoço como um condenado esperando pelo machado do seu carrasco.
— O que você está fazendo? — perguntei.
— Se você me matar, poderei descansar sabendo que alguém estará vivo punindo os maus desse mundo cruel.
— Já disse que não sou igual…
— Eu era o urso mais fraco dos meus irmãos, fui abandonado pela minha mãe na floresta e quase morri nas mãos de caçadores. Quando estava prestes a desistir da minha vida, encontrei uma menina de cachos dourados. Ela me tratou com amor e carinho, cuidando de mim como um filho. Jurei protegê-la, porém, ela foi morta diante dos meus olhos por um deus! Eu segui o assassino até sua tenda. Ele dormia pensando estar seguro. Cravei meus dentes em seu pescoço e o matei com o mesmo ódio que ele teve ao matar minha amiga humana. Ganhei os poderes dele e fiquei mais inteligente e forte. Mesmo assim, meu único arrependimento foi ter falhado com a menina que jurei proteger. Você quer proteger o seu elfo de cachos dourados com os poderes de um deus? Golpei meu pescoço e ganhe meu ódio e fúria para que nunca ninguém possa tirar seu menino de você.
Eu não me segurei. As palavras do urso fizeram sentido para mim. O que adiantava ter o poder de um deus, mas não ter sua coragem para tirar uma vida? Conforme ceifava a vida daquele animal, sentia o seu ódio e fúria dominando meu coração. A cabeça dele caiu no chão e a minha inocência saiu junto. Meus cabelos, antigamente castanhos, se tornaram negros semelhantes aos pelos do Sourukira.
— Tenho os poderes de um deus e o ódio de Sourukira. Ninguém, nem mesmo o mais forte dentre os mortais, conseguirá fazer mal ao meu Isniffi! — gritei, logo após lamber a faca sem demonstrar dor.
…
O imperador me olhava com olhos de terror. "Quem poderia imaginar que a Emika conseguiria matar o urso?", deve ter pensado. Meus irmãos não conseguiam esconder o medo. Até minha mãe, que mal olhava para mim, não tirava os olhos do meu rosto. Isniffi dormia em meu braço enquanto no outro segurava a cabeça de Sourukira.
— Você prometeu que daria sua bênção ao Isniffi se eu matasse Sourukira — afirmei, jogando a cabeça aos pés dele.
— Como você fez isso? — perguntou, gaguejando — você pagou algum mercenário?
— Fiz o serviço sozinha, mas se não acredita, manda aquele grandalhão vir aqui conferir — sorri.
— Vá lá e tire aquele moleque dos braços dela! — ordenou o imperador.
Quando o imperador menos esperava, lá estava minha faca encostada em sua garganta. O poder das botas que ganhei do deus da tempestade me deixou mais veloz do que um raio.
— Quem é você? — perguntou ele tremendo — Minha filha nunca faria isso…
— Digamos que você nunca mais verá sua velha Emika.
— Pode ficar com o menino, ele será seu filho e receberá o nome da casa Ikari, como prometi.
— Obrigada, meu imperador — afirmei com uma reverência — agora, com sua licença, preciso dar um banho nesse pequeno fedorentinho.
Quando penso que o urso nada fez por mim, eu me lembro que só consegui usar os meus poderes devido à fúria que ele me deu. Com ela, tive coragem de fazer o que é certo com todos que se meteram com meu filho. Minha vida mudou; nunca mais deixei de sorrir. Quando me sinto triste, meu Isniffi me alegra; nos momentos de solidão, ele me mostra o verdadeiro sentido da vida. Não é ouro, muito menos vida longa, mas o amor que faz nossa existência ter sentido.
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