Yusuke se distraía olhando as sombras de seus corpos no chão repleto de ervas daninhas, acompanhando o movimento da luz alaranjada das lanternas. Fazia um silêncio sepulcral entre eles — enquanto o mundo ao redor desabava numa chuva sem fim.
Ele voltava a sentir falta de ar, mas usava todo seu autocontrole para que Tetsurou não percebesse. Quando a imagem trêmula da própria sombra não foi suficiente para afastar os pensamentos, lembrou-se do sussurro de Tetsurou, antes de saírem da cabana. Seu humor azedava, o sentimento de rancor ardia. Evitou pensar na mancha queimando mais e mais, entretanto era difícil não se deixar levar pela revolta do que foi dito, como se fosse sua culpa eles terem se afastado. O primeiro que o empurrou para longe e o abandonou, junto com a sua amizade, havia sido Seki Tetsurou.
Os seus olhos ficaram turvos, desfocados pelas memórias que vieram. Mergulhou no momento em que eram melhores amigos. Sempre juntos, brincando o dia inteiro pelo templo de Inari e nas florestas que circundavam Akayama.
Não havia nada que Yusuke amasse mais do que estar com Tetsurou.
Ele era a única pessoa que o entendia e fazia se sentir feliz de verdade. Mesmo não tendo sido adotados pela mesma família, passavam a maior parte do tempo juntos, menos nas horas das refeições e quando a lua já estava alta no céu. Eram conhecidos por serem uma dupla inseparável, uma amizade que havia resistido ao ódio que suas famílias nutriam uma pela outra.
Era um amor puro. Yusuke amava Tetsurou como o melhor amigo que qualquer garoto de oito anos poderia querer. E ele acreditava fielmente que Tetsu tinha o mesmo apreço pela amizade que tinham, pela cumplicidade de sempre estarem ali um pelo outro.
Em qual estação tudo começou a ruir? Talvez no inverno, pois as folhas secas das árvores criaram mosaicos coloridos por toda a vila e as cerejeiras estavam longe de florescerem. Não sabia se o frio que sentia quando se lembrava daquele período era por conta da estação ou pelo vazio deixado em seu peito ao ter o coração arrancado cruelmente, deixando-o sozinho. Abandonado.
O que sentia era frio. O verdadeiro motivo, no final, não importava. Não era capaz de se salvar sozinho; não do inverno prestes a chegar.
Nas primeiras vezes que Yusuke havia ido até a casa de Tetsurou e ele falava que não podia sair para brincar, ficou chateado, mas compreendeu o lado do amigo. Ele tinha aulas em casa, precisava estudar e se dedicar para merecer ser o herdeiro do clã. Por mais que sua intuição o cutucasse, dizendo que alguma coisa não estava certa, convencia-se de que era só impressão. Era só esperar e, em breve, quando Tetsurou tivesse tempo, ele iria procurá-lo para que pudessem sair juntos de novo.
Yusuke continuou esperando. E esperando. Os dias passavam, as luas mudavam de fase, novas flores surgiam no vilarejo e outras eram tragadas pelo tempo. O pequeno samurai observava pela janela do seu quarto a vida continuar, abraçando os próprios joelhos enquanto fazia uma oração silenciosa para que os dias passassem mais rápido. Logo Tetsu poderia sair e eles seriam, novamente, a dupla inseparável de antes.
Qualquer um teria desistido, mas Yusuke continuava acreditando cegamente que não havia nada de errado. Mesmo que sua mãe o alertasse, dizia para si mesmo que a opinião dela não era neutra, já que odiava a família Seki e, consequentemente, seu melhor amigo. Dia após dia, ele ia bater à porta da mansão e toda vez Tetsu vinha com as mesmas desculpas, cada dia mais distante, evitando se alongar em conversas e voltando logo para dentro. Yusuke tinha de ser ainda mais compreensivo, arrumando desculpas em cima de desculpas para o que acontecia: se Tetsu estava evitando olhá-lo nos olhos, por exemplo, era porque sentia vergonha de estar o dispensando tantas vezes; que, na verdade, Tetsurou queria sair com ele, mas as novas responsabilidades trazidas pelos seus sete anos não os deixavam se encontrar; que Tetsu era herdeiro do clã, portanto sua família deveria estar sendo mais rígida, não deixando que brincassem mais, afinal, o ódio entre os Seki e os Kou era recíproco.
Desculpas em cima de desculpas.
Quando os primeiros flocos de neve começaram a cair, manchando as folhas verdes com minúsculas pintas brancas, foi que Tetsurou parou de aparecer. Quem passou a atender foram os empregados da mansão, dizendo que seu jovem mestre estava ocupado e não tinha tempo para falar com ele. De vez em quando, Tetsurou ainda o atendia, mas suas aparições ficaram mais raras, frias como nunca tinham sido. Yusuke sentia um abismo começar a se abrir entre eles. O alerta em sua cabeça soava cada vez mais alto, mas ele se recusava a acreditar. Ele não queria acreditar.
Não saía com mais ninguém naquele vilarejo, apenas com Tetsurou. Não que tivesse qualquer problema com as outras crianças, mas se pudesse passar o tempo com alguém, escolheria estar com ele. Entretanto, seu melhor amigo não estava mais lá, então tudo o que fazia era ficar sozinho em casa ou sozinho no rio perto da vila. Às vezes se deparava com a menina que vivia perdendo suas coisas, Hana, mas não tinha ânimo para buscar nada com ela.
Passava a maior parte do tempo no rio, treinando com sua espada de madeira improvisada enquanto esperava por Tetsurou. Fingia ser um samurai e praticava a sério os golpes, e até ficou bom em vários deles, mesmo sem um mestre. Os treinos eram a força que o impulsionava a prosseguir, esperar, abrandar a ansiedade, confiar em Tetsurou e na amizade deles. Era só esperar mais um pouco. Mais um pouquinho…
Naquele dia, a neve não aparentava ter nada de diferente dos outros dias. Yusuke vestiu seu kimono de inverno e andou até o rio, não sem antes tentar, mais uma vez, chamar Tetsurou para sair. As negativas dos empregados já faziam parte da sua anestesia; ele nem se abalava mais em recebê-las, só pensava que Tetsu iria acabar morrendo de tanto estudar e decorar kanji. Yusuke virou as costas e tomou a direção da floresta, os pés afundavam na camada de neve espessa, deixando pegadas por onde passavam. Era melancólico passar o inverno sem seu melhor amigo; em todos os outros haviam estado juntos, brincando de fazer castelos, batalhando com bolas de neve e criando bonecos maiores que eles. Nem o udon de porco iria comer mais. E estava com tanta saudade da comida de Tetsu, até da sua lerdeza sentia saudade. Prometeu até que não ficaria tão bravo com ele das próximas vezes que se perdesse por aí…
Naquele inverno, até o rio tinha congelado e não podia sequer praticar com a espada de madeira ali. Não havia mais nada. Só o frio, vazio e silêncio. Nunca havia se sentido tão solitário em toda a sua vida. Tão desnorteado. Tão desprezado. Doía lembrar que antes era tão feliz, e se remoía pensando que deveria ter aproveitado mais.
Olhando para o rio congelado, no silêncio característico das montanhas, captou risadas distantes. Pareciam estar se divertindo, diferente dele… Curioso, ou somente se rendendo ao fato de que deveria tentar fazer novos amigos, seguiu a melodia das gargalhadas. Chegou a uma clareira, mas antes de se mostrar presente à rodinha de meninos e meninas brincando de correr, ficou atrás de uma árvore observando quem eram as crianças reunidas. A vila não era tão grande, então reconheceu a maioria. Gostava de brincar ocasionalmente com elas, mas nunca havia aprofundado um vínculo de amizade. Sabia o nome de todos, como a Hana, o Iero, a Rumiko, o Yuki, a Wakana, a Kami e…
Seki Tetsurou?
Seu corpo gelou. A temperatura baixa invadiu as camadas das suas roupas, as unhas fincaram inconscientemente no tronco da árvore e apertaram até a dor aguda vir. O rosto transfigurado em choque, os olhos arregalados vendo Tetsurou rir despreocupado enquanto corria com seu novo círculo de amigos. Não estava em um quarto fechado, cheio de livros e professores à sua volta. Suas bochechas traziam o calor do suor por já estar ali há algum tempo, enquanto as de Yusuke embranqueciam cada vez mais. O maxilar trincou. O coração se espremeu tanto que ele achou que iria morrer de desgosto e decepção.
As desculpas que ouviu tantas vezes não soavam mais como lamentosas. Tetsurou nunca esteve triste ou envergonhado por não poder sair para brincar. Na verdade, continuou indo se divertir, mas com outras crianças, e sem carregar nenhum remorso. Enquanto Yusuke era rejeitado, Tetsurou saía com pessoas que não eram ele.
Mentiroso.
Falso.
Traidor.
Não soube quanto tempo ficou parado. Estava tudo frio, tão frio. O tempo congelou. Os dentes de Yusuke batiam, tremiam, ele queria chorar, mas usou toda sua força para não deixar cair uma lágrima. Não havia mais calor, apenas gelo sobrou dos longos dias de verão que passaram juntos.
Mesmo que a grossa camada branca no chão tentasse impedi-lo, Yusuke não se abalou com o atrito. Seus dentes trincados, as pupilas dilatadas. Os punhos tão fechados que, se não fossem as luvas que vestia, suas unhas já teriam cortado a carne. Marchou com a arma de madeira sobre a neve, deslizando e chutando sem tirar os olhos turvos do seu alvo, a única pessoa que importava. Que deixou de importar. As outras crianças não existiam.
Tetsurou brincando, rindo apesar de tê-lo abandonado. Tetsurou parando de correr, de rir, ao notar as outras crianças tensas. Tetsurou com as costas vulneráveis, a poucos centímetros de distância. Tetsurou se virando quando Yusuke estava prestes a extravasar sua raiva. A surpresa em seu rosto antes de ser empurrado com vontade para trás.
Seki caiu em cima dos próprios cotovelos e pernas dobradas. De frente para Yusuke, parecia que seus olhos iam saltar da cara. Não havia sombra de arrependimento em seu rosto pálido, apenas espanto. Os lábios sequer esboçavam a intenção de pedir desculpas. Só tremiam. Ele tremia. Temia.
A única culpa visível era por ter sido descoberto.
— Seu mentiroso! Eu te odeio! Tomara que você morra! — gritou cheio de raiva, a pele queimando em fúria, o nó na garganta se tornando uma grande bola dolorida.
Ergueu a espada de madeira para espancar Tetsurou com ela, o ar saindo com ódio entre os dentes, com a gengiva arreganhada. Não houve tempo nem do outro se proteger, só fechar os olhos em reflexo. Yusuke cortou o ar, gritando de frustração por não conseguir atingi-lo. Jogou a espada de treino no chão e a chutou, levantando neve junto. Tetsurou achou que Yusuke iria chutá-lo também e se encolheu, mas tudo o que tocou sua pele foram flocos congelados.
Não esperou uma reação, não iria permitir que Tetsurou continuasse o encarando enquanto desmoronava. Seus olhos vermelhos pinicavam, forçando a passagem das lágrimas. Quando uma infinidade delas atravessou a muralha e escorreu pelo rosto, Yusuke já estava correndo sem olhar para trás. Sua afobação, a falta de visão, a ansiedade comendo o coração, os pulmões tragando gelo para dentro de si, tudo isso não o deixava prestar atenção para onde estava indo. Seus pés queriam levá-lo para longe, o mais longe possível.
Quando finalmente se percebeu isolado, caiu de joelhos e gritou um grito longo e doloroso. O salgado das lágrimas deixava o gosto amargo da rejeição ainda mais difícil de ser engolido. Depois de chorar tanto a ponto de não ter mais lágrimas, ficou durante horas gritando, soluçando e socando as árvores com mãos nuas, ignorando a dor do impacto em seus punhos e o sangue tingindo a neve aos seus pés.
Não soube como chegou em casa. Estava tão cansado, tomado por sentimentos de rancor, decepção e ciúmes que provavelmente havia vagado pela tempestade de neve até chegar ao vilarejo. Acordou no dia seguinte em seu futon, as duas mãos enfaixadas pela mãe, e mal conseguia mexê-las de tanta dor. Akane contou que ele havia chamado seu nome no portão e desmaiado logo seguida. Assim que ela arrastou o shōji para descobrir quem era, encontrou o filho inconsciente na entrada com os punhos sangrando.
Yusuke teve que treinar o mais difícil: a paciência. Esperou seus ferimentos sararem. Esperou Tetsurou aparecer para se explicar. Porque tinha que haver alguma explicação, não podia ser o que parecia, eles eram amigos há anos! A esperança de que fosse tudo um mal-entendido segurava a última lasca de carinho que definia o Seki como seu melhor amigo. Isso e a vontade de provar para os pais que eles estavam errados, que sua amizade resistiria, sim, ao ódio de suas famílias.
— Esqueça, filho, pois ele já te esqueceu. — E quando Yuu sacudia a cabeça para negar: — Os Seki são todos iguais, Yusuke. Eles regam as flores até darem frutos, então, deixam que morram. Essa já é a índole que aquela criança tem.
— Ele é diferente — insistia Yusuke, mesmo depois de tudo que aconteceu. — Ele nunca vai ser um Seki, mamãe.
Então ficou em casa, sem ousar colocar os pés na aldeia, prestando atenção na porta e esperando ouvir o seu nome ser chamado. Os machucados dos nós dos dedos já haviam sarado; Tetsurou não havia aparecido para curá-los daquela vez. Quando as primeiras flores desabrocharam do chão, lutando contra as camadas geladas para encontrar a quentura do sol, foi que Yusuke entendeu as palavras da sua mãe e admitiu que ela estava certa.
Tetsurou não apareceu.
Os Seki são todos iguais.
— Ele continua brincando normalmente com outras crianças, eu mesma vi. — Sua mãe lhe disse. — Esqueça, Yuu-kun, pro seu próprio bem…
Mas Yusuke não conseguiu esquecer.
O que antes era melancolia se transformou em puro ódio por ter sido feito de idiota, acreditando em um sentimento que não existia. Finalmente entendeu que a amizade era unilateral, e que Tetsurou jamais iria procurá-lo, ele não se arrependia de nada. E, pelos céus e montanhas, como isso deixou um buraco em sua existência. Como doeu aceitar que foi, mais uma vez, abandonado.
Contudo, como não há nada que seja eterno, o afastamento de Tetsurou também não foi. Ele apareceu para se reconciliar, sim, mas com anos de atraso. Estes foram o suficiente para que as sementes do ressentimento, fúria e decepção que havia plantado dessem frutos no peito do ex-melhor amigo. E se nada dura para sempre, Yusuke ia arrastar aquele rancor consigo até o túmulo, para que morressem entrelaçados.
Infelizmente ele não sabia o quanto estava certo.
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