Yusuke se ergueu, amassando a carta de volta no bolso interno e se preparando para sacar a katana. O rōnin mais jovem tinha levantado se supetão, mas ao vê-lo melhor, Yusuke desistiu de tirar a Verdadeira Lâmina da Serpente da bainha. Se já não era um bom adversário antes, agora não precisava se preocupar. A pose do rapaz era desleixada, com os braços moles ao lado do corpo, a cabeça tombada para baixo.
Mas ele fazia um som baixinho, o prenúncio de uma risada ressoando pelo ambiente.
— Ele está preso na passagem para o Yomi. Não tem muito tempo. — Tetsurou deduziu e se colocou à frente de Yusuke antes de ele protestar ou perguntar como sabia essa informação. — Veja!
Não havia nada para ver — não que Yusuke tenha reparado de primeira. Mas isso mudou quando o rapaz levantou o rosto.
Seus olhos estavam injetados, fora do normal. Arregalados. Com um sorriso transfigurando as bochechas. Não parecia mais humano. Yusuke estava paralisado; Tetsurou, por outro lado, se atentava a cada movimento com certo encanto.
— Esses desgraçados — o garoto transformado xingou, seguido de um “huh” debochado. — Quase conseguiram!
Os dois rapazes trocaram um olhar tenso. O rapaz levantou no ar uma pérola peculiar, de cores iguais às do ying e yang; metade branca, metade preta. Ela era o centro de uma flor de pétalas rosas cujo caule estava pressionado pelo polegar e indicador pálidos daquele sujeito.
Seki Tetsurou arregalou os olhos.
— Como é possível…? Essa… só pode ser a shinzō kusa.
O devaneio em voz alta fez o rapaz repará-los ali. O rosto se contorceu em linhas ainda mais sombrias, mas dessa vez a atenção era exclusiva de Tetsurou.
— Você, moleque. — A voz veio gutural, áspera como uma lixa. O jovem deu um passo, apontando para o curandeiro. — Também sabe da existência da flor sagrada.
O corpo de Tetsurou vibrava, o brilho nos seus olhos era do tamanho de uma lua. As mãos suadas se juntaram e os joelhos bateram contra o chão. Yusuke estava estático, assistindo a cena como se não fosse real. Esse era o mesmo desertor do clã Miyoshi que tinha enfrentado momentos atrás?
— Eu sei, mas… não sei onde estão. O senhor sabe, não é? Por favor, nos ajude. Nosso vilarejo está em risco e só uma defumação com essa flor pode nos salvar.
A energia do ambiente pesou. O jovem rōnin trincou os dentes, o rosto vermelho.
— Como ousa olhar nos meus olhos e falar que deseja queimar a flor sagrada? — Socou a parede atrás de si, sem mexer o corpo, criando um buraco. — Seu insolente! — Uma onda de ar sacudiu o pó da choupana, atravessando seus corpos numa energia sinistra. A fisionomia do rosto ficava cada vez pior. Caminhos negros dilatados percorriam a extensão da pele, voltando a pulsar, viva, se alastrando, vibrando. Matando.
Ele não tinha muito tempo.
— É para uma boa causa, crianças e idosos estão morrendo. — Tetsurou abaixou sua cabeça, a testa tocando o chão de terra batida. — Por favor, nos ajude.
— Houve uma vez que confiamos em um de vocês. Os mesmos pedidos, a mesma urgência. Nós nos compadecemos e cedemos uma pérola para que salvassem uma vida. E para quê? Vocês nos traíram na primeira oportunidade! — Outro soco na parede, alargando o primeiro buraco e criando uma nova onda de energia. — Vocês são todos iguais. Nós não nos importamos com seus problemas, logo irão morrer, mas nossas flores e ervas serão eternas. Vão embora daqui!
Tetsurou estava pronto para argumentar mais uma vez, mas travou quando viu o homem levar a pérola até a boca.
— Nã…!
Ele a engoliu e logo convulsionou antes que a pérola chegasse ao estômago. Membros retorcidos, olhos revirados, o sangue em erupção expelido pela boca e se espalhando por toda a cabana. Debateu-se até morrer, afogado pelo próprio vômito. Os sintomas iguais aos dos aldeões doentes.
Yusuke havia puxado Tetsurou para trás de si, seu kimono inteiro manchado com o sangue que esguichou do rōnin. Ficaram observando a cena até Tetsurou voltar a se levantar, se apoiando nos ombros de Yusuke. Aproximou-se devagar do corpo estirado, a piedade apertando forte o coração ao constatar que não pôde fazer muito nem por ele, nem pelo mais velho. Fechou os olhos e rezou baixo para que Inari acalentasse as almas.
Ele sabia que não havia como salvá-los, pois já estavam infectados com a mesma energia que possuiu o senhor Koyama, Mirai e as dezenas de pessoas que tratou ao longo daqueles seis meses. Apenas suspeitava que algo assim pudesse acontecer em Akayama, mas jamais imaginou que dois samurais desonrados pudessem ter apanhado a pérola e a flor, ambas raras justamente porque só se via sua cor em pinturas de livros. Provavelmente aqueles homens queriam levá-la para enriquecer, mas espíritos protetores os destruíram antes disso.
Agora tinha a confirmação de que a planta realmente existia e era protegida. Pegá-la culminaria em uma perseguição, não seria simples. Com certeza seria seguido pelo mesmo espírito, e com seu senso de direção terrível, se fosse capturado…
— Yuu-chan, eu não sou capaz de fazer isso sozinho.
A voz rouca de Tetsurou o trouxe de volta à realidade. O samurai estava perdido em seus pensamentos, lembrando-se dos acontecimentos estranhos que o acompanharam desde que retornou à Ise.
Talvez… só daquela vez… Tetsurou estivesse certo?
— Ótimo que você tenha percebido isso por conta própria. — Ao contrário do que pensava, foi o que disse. — Vamos voltar agora.
— O quê? Você não viu o que estava nas mãos dele?
— A pérola que fez ele morrer, Seki? — Yusuke estalou a língua, abrindo a porta da choupana e constatando que a chuva tinha partido, deixando para trás uma garoa fina.
— Isso porque ele não a usou de forma correta.
— Eu já te neguei. Não vou repetir. — Yusuke indicou a saída com a cabeça. — Vamos encontrar outra forma.
Tetsurou mordeu os lábios quando Yusuke virou de costas e deu o primeiro passo para fora. Então agiu sem pensar. Pegou a lanterna e os pés partiram na direção da porta, abandonando dois corpos mortos. A mão esquerda, que carregava a pulseira de sua infância, segurou a sua semelhante e puxou. Ele fez Yusuke estagnar com o calor repentino o enlaçando, não passando de um mero observador de como estavam perto um do outro de repente.
Gotas pousavam em suas roupas, cabelos, cílios e lábios enquanto se olhavam. Uma parada de tempo. Foi como se um raio tivesse os atingido e a eletricidade rastejasse pelas colunas. Choque no rosto de Yusuke. Ar escapou da boca de Tetsurou.
— A planta que dá fruto à pérola se chama shinzō kusa e afeta o chakra cardíaco, que é onde eu percebi que se desenvolve a doença. — Sua voz tremia quando começou a falar. — Ela cresce no topo da montanha e é guardada por Youkais por ter poder espiritual, como acabamos de testemunhar, e seria bom chegarmos lá o mais rápido possível. Já cheguei até aqui… não posso voltar. Yuu… eu não quero perder a minha irmã. Você falou que viu muitas mortes e até as provocou, mas conseguiria apenas observar quem ama morrendo sem fazer nada?
O contato visual acabou ali. Tetsurou abaixou a cabeça, implorando em silêncio para o samurai.
Yusuke ainda não conseguia se mover.
— Não me abandone agora…
Yusuke conseguiu ouvir o murmúrio e pulou para trás. Foi tão baixo que poderia ter sido coisa da sua cabeça. Livrou-se do contato. Da proximidade. Deu sussurros inadmissíveis que nunca deveriam ser ouvidos. Ganhou a palpitação no peito, a mancha voltando a pulsar, viva, se alastrando, vibrando. Matando.
Ele não tinha muito tempo.
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