Dois relâmpagos iriam salvar duas vidas naquela noite.
O primeiro que ressoou foi apenas um aviso. Pouco menos do tempo de um incenso, Yusuke já se esgueirava entre o caminho sinuoso da montanha. A chuva caía rascante, abrindo caminho através da vegetação fechada. Era preciso se agachar e se esgueirar entre galhos, chacoalhados pela corrente de vento. A terra devorava seus pés, a luz da lua havia se perdido entre as nuvens carregadas, e a lanterna de papel que Yusuke levava, destacada com os kanji de “eternidade”, foi largada lá atrás, inútil àquele clima torrencial; a chuva subjugou o silêncio da Akayama, mas não só isso.
Subjugou os sentidos de Kou Yusuke.
Como um organismo vivo que devora os corajosos o bastante para se embrenhar pelo seu ecossistema, Akayama parecia ter sido feita para matar. Corpos que apareciam em decomposição, mulheres e crianças levadas para a boca do monte por baderneiros, barrancos mortais que davam em desfiladeiros, labirintos de árvores iguais e, claro, o mito das criaturas demoníacas que eram piores do que qualquer uma das ameaças anteriores. E tudo que apresenta tamanha blindagem só pode querer proteger algo em específico.
As pegadas eram lavadas junto às folhas, tentando carregar o samurai consigo montanha abaixo. A tempestade tinha um som. E ele dizia:
Vá embora.
Mas Yusuke se negava. Prometeu resgatar Tetsurou e prometeu voltar para a mãe. Precisava cumprir seus juramentos. Recusava-se a voltar, iria até o fim porque promessas eram mais importantes do que a morte. Ele agarrava-se aos troncos, firmava os pés no solo, mordia os lábios cada vez que uma pontada no peito o impedia de continuar. Quando parava para respirar, as agulhas de água tornavam a tarefa um desafio. As vestes ensopadas eram como uma segunda pele; e a tentação de arrancá-las com a própria espada o acompanhou durante topo o tempo.
Em dado momento, a trilha se alargou, criando uma bifurcação. Yusuke foi incapaz de reconhecer onde estava. Tentou recriar o caminho que havia aprendido nas vezes em que foi treinar espada por ali, em desafios fatais jogados por sua mestra quando era um mero koshō — você deve sobreviver às situações mais arriscadas e inusitadas, era o que ela dizia. Mas nunca treinou à noite, pois até KuanYang era prudente em não arriscar seu pupilo tanto assim. Ficou algum tempo ali, ponderando as opções. Não tinha tempo de errar. Por qual caminho encontraria o curandeiro?
Seki Tetsurou tinha o pior senso de direção do mundo, ele escolheria o caminho que o meteria em apuros. À esquerda. Foi o que Yusuke escolheu.
Os trovões não davam trégua. Camuflavam qualquer barulho — das folhagens, de animais, da própria água caindo. Os sentidos para as ameaças tinham que dobrar, mas como, se nem de olhos abertos conseguia ficar?
Como ia perceber as figuras que se espreitavam às suas costas?
Tendo que parar para inspirar, Yusuke estranhou sua respiração de imediato, percebendo-se praticamente sem fôlego. Era acostumado a esforços mais exaustivos do que subir colinas, não deveria se cansar tão depressa.
Apoiou-se no tronco de uma árvore, se recuperando para seguir em frente. Era como se Akayama estivesse roubando a sua vitalidade. Respirar ardia. Tudo ardia. Andar doía. E a ânsia vinha sem aviso. Como pôde chegar ao seu limite tão cedo?
— Maldito Tetsurou, não podia ter esperado amanhecer para agir como um exterminador de Youkais? Que droga — resmungou entre arfadas, descontando a raiva na força que colocou ao morder os lábios. — Se é que esse cargo ridículo…
Uma trovoada barulhenta precedeu um raio que cortou o céu, iluminando, por um segundo, uma sombra armada às suas costas. Yusuke mal teve tempo de desviar. Quando se deu conta, a lâmina havia rasgado a roupa e feito um risco na carne. A sua espada foi retirada com menos agilidade do que o costume, e o aço azul da lâmina brilhou, deixando aparentes as duas figuras hostis. Dois homens, um musculoso e alto, e o outro jovem e inexperiente, pela forma que empunhava a arma; suas faces escondidas por um chapéu de palha que os protegia da chuva. Quando eles viram a Verdadeira Lâmina da Serpente, o reconhecimento tencionou seus ombros.
— Não pode ser. Esse é o…
— O demônio de Oda Nobuyasu, que cortou mais de sessenta cabeças em Osaka — completou o mais alto, cuspindo o nome do senhor de Owari como um xingamento. — Sessenta dos nossos companheiros.
Seu daimyō bufaria uma risada ao saber que a fama daquela batalha ao oeste rendeu a um cético como Yusuke uma alcunha tão inadequada. Mas esse título podia ser suprimido com a mesma facilidade que se espalhou, caso fosse derrotado ali. Dois contra um não era um problema, ainda mais se tratando de guerreiros desonrados do clã Miyoshi, mas agora Yusuke se preocupava em não transparecer a dor que abraçava suas entranhas ao mínimo esforço. Se demonstrasse, poderia se considerar morto — mesmo se não perdesse a vida ali, sua honra estaria arruinada.
Dando uma olhada nos seus adversários, constatou que não havia marcas que indicassem uma luta passada. Quase suspirou de alívio; significava que Tetsurou estava seguro — e então de temor; havia escolhido o caminho errado atrás do curandeiro.
Os dois avançaram ao mesmo tempo. Tinham mais fôlego que o samurai, rendendo a pressão nos golpes. Yusuke defendia as estocadas com dificuldade, sentindo que não iria aguentar ataques tão violentos, até pessoais, em uma situação como aquela. O máximo que Yusuke pôde fazer foi empurrar o mais robusto deles com um chute que o derrubou, e fazer a espada do outro voar, mas este ainda possuía uma wakizashi escondida. O jovem Kou foi arrastado para trás com o frenesi dos ataques e não viu a raiz acima do solo. Ao pisar em falso e cair, perdeu sua Verdadeira Lâmina da Serpente na queda.
No impacto do corpo contra a lama, a mancha em seu peito pulsou. Não teve tempo de tossir o sangue preso na garganta antes do rōnin contra quem lutava subir e prendê-lo no chão, forçando a espada curta até seu pescoço. O reflexo de Yusuke o salvou, agarrando o pulso e o empurrando para trás enquanto gritava de dor, acima do som do mundo, lutando contra algo bem pior deteriorando seu coração. Se não fosse por isso, não estaria passando tanto sufoco contra um garoto com os piores movimentos que já viu.
— Você matou o meu irmão? Você? — o garoto disse entredentes, raivoso. Forçando mais a espada, quase encostando na pele da garganta de Yusuke. — Eu não acredito.
A segunda figura havia se recuperado e se aproximava por cima do ombro deste rōnin mais novo, indo dar o golpe final. Nesse tempo todo, o samurai manteve o outro braço esticado, a mão tateando a lateral em busca de sua espada azul, mas acabou por achar outra coisa.
— Encontre-se com ele e tire a dúvida.
Ao dizer isso, Yusuke arremessou uma pedra maciça acima do garoto, atingindo a testa do segundo homem, perto o suficiente para despencar por cima do companheiro. Quando isso aconteceu, o dobro de peso afundou o corpo do samurai na terra. Ele grunhiu, mostrando os dentes pelo sufoco de ter dois homens desacordados sobre si, quando já sofria pela respiração escassa. Empurrou os corpos de qualquer jeito, sentindo a chuva lavar seu rosto, o caminho de sangue nos lábios, os cabelos sujos, a roupa banhada à lama.
A wakizashi usada para tentar cortar o pescoço de Yusuke estava cravada no ombro do seu dono, perto do peito. Nos segundos entre o arremesso da pedra e a queda, seu inimigo havia se distraído. Yusuke usou toda a força para dobrar punho do rapaz, virando a espada curta para ele. O impulso do peso do outro homem fez o resto do trabalho. Com isso, nenhum dos dois ia se mover por um bom tempo.
Yusuke se arrastou até onde a Verdadeira Lâmina da Serpente refletia seu azul vibrante, trazendo-a contra o peito. Também havia trazido a sua wakizashi, mas raramente a usava. Ele estava acabado, deixando os arquejos de exaustão saírem livremente e as gotas de chuva hidratarem sua garganta. Mas não houve tempo para descansar mais que isso.
Uma terceira sombra cresceu sobre si. O samurai permaneceu imóvel, fingindo não reparar a aproximação, enquanto pensava: havia mais um homem com aqueles desertores do clã Miyoshi?
Com o sangue quente bombeando em cada veia, foi preciso apenas um movimento quando a sombra parou bem acima de si, em pé, rosto sobre rosto. Ele virou o braço e cortou o ar com a espada até levar o pescoço junto.
Mas o terceiro relâmpago brilhou urgente no céu, como se tentasse evitar que Yusuke cometesse um grande erro. A luz azulada se expandiu por toda a clareira e só assim ele reconheceu as feições daquele rosto na altura do céu escuro, com um arquear de lábios que nunca o permitiu ter paz. Nem mesmo quando estava prestes a morrer sozinho na lama.
— Como você… — grunhiu com a voz rouca.
Tetsurou desenhou um sorriso tão largo de contentamento que fez o samurai tremer, mas não tanto quanto pelo o que ele disse:
— Eu sabia que você viria.
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