Yusuke não pregava os olhos.
Cada detalhe da madeira do teto foi decorada e marcada entre as pálpebras. Ele se mexia de um lado para o outro no futon, sem conseguir aproveitar a brisa fresca que se esgueirava pelas janelas. Sua testa, encharcada de suor, em nada tinha a ver com o calor borbulhante de Ise. Yusuke só ficava inquieto assim antes de lutar na guerra de clãs pelo poder do shogunato.
Como poderia estar tão ansioso, quando só tinha conversado com Tetsurou?
Pensou não se importar com o que o antigo amigo fazia ou deixava de fazer, mas sua consciência não permitiu que ignorasse.
Não conseguiu ignorar nem enquanto comia, mesmo após anos sem provar a refeição favorita preparada pela mãe. Ryuji estava ajoelhado no extremo da mesa; sua pose rígida mostrava que aquele era o assento de maior relevância, enquanto Yusuke e a mãe sentavam-se de frente um para o outro. Daquela vez, não era a presença do homem que fazia Yuu ficar enjoado…
Até a tigela cheia de udon com acompanhamento de porco o lembrava de Tetsurou. Os Kou não possuíam muitos animais para o abate e nem dinheiro para iguaria tão cara; as únicas vezes que costumava saborear carne era quando se esgueirava até a propriedade dos Seki. Tetsurou preparava o macarrão e acrescentava fatias de carne suína unicamente para ele, uma vez que o curandeiro não gostava.
— Não está com fome, Yusuke?
Ele levantou o olhar dos filetes de porco para ver a mãe. Podia imaginar sua reação se dissesse que perdeu o apetite porque a comida era idêntica à do “menino Seki”.
— Mostre respeito pela refeição, garoto. — Ryuji trincou os dentes, segurando os hashi com raiva. — Não sabe que essa maldita sacrificou o único porco que tínhamos para que você comesse bem hoje?!
— Eu não disse que não iria comer — respondeu impassível, por dentro querendo jogar todo o caldo quente na cara dele. Quase falou que tinha enjoado de porco, mas o olhar expectante de Akane o deixou sem coragem. Se era verdade que eles abateram o último animal por ele… Quão insensível seria recusar? Por fim, forçou um sorriso e provou a comida. — Está delicioso, mãe.
Pensou que teria paz quando fosse se deitar, mas estava enganado.
Tirar da cabeça a imagem de Tetsurou percorrendo Akayama sozinho não era tarefa fácil. Piorava por não saber exatamente quando ele pretendia ir. A cada segundo pensava nos bandidos à espreita, pessoas de clãs inimigos, rios selvagens, precipícios… Armadilhas perfeitas para pegar desprevenido uma pessoa distraída como ele.
Quando ainda eram amigos, Tetsurou se perdia por qualquer lugar que andasse, fosse no vilarejo ou em uma floresta. Não prestava atenção em nada ao seu redor. Tão acostumado a perdê-lo em brincadeiras de se esconder, era Yusuke quem o encontrava encolhido embaixo de uma árvore ou sentado nas pedras, esperando pacientemente, como se tudo estivesse sob controle. Depois Yusuke brigava com ele, muito bravo, e perguntava como ele ficava tão tranquilo quando deveria tentar achar uma forma de encontrá-lo.
Tetsurou sorria e sempre dizia a mesma coisa:
— Porque eu sabia que você viria.
Fechou os olhos com força, afastando a lembrança e captando sons vindos do jardim. Yusuke já estava cansado de ter que prestar atenção em todo mínimo ruído quando tinha ido para casa relaxar. Aqueles barulhos misteriosos o estavam acompanhando desde cedo! Fosse o que fosse, a raiva tomou Yusuke ao pensar em Tetsurou alegando que aquilo seria um Youkai o perseguindo. Resolveu dar um basta, levantando-se de supetão e saindo pela porta do seu quarto que dava acesso ao terreno.
Alguém tinha percorrido todo o jardim e estava tentando entrar pela porta da frente. Não tinha o mínimo cuidado em fazer silêncio. A silhueta escura já tinha alcançado a entrada da casa e parecia estar decidindo o que fazer. O cheiro de nervosismo era sentido de onde Yusuke estava, observando atrás de uma quina de madeira a figura indefesa, encolhida, feminina, de cabelo longo, que chamava seu nome.
— Yusuke-san! — ela sussurrava cada vez mais forte. — Yusuke-san!
Yusuke curvou a sobrancelha ao reconhecer Hana. Deveria estar desesperada para sair de casa naquele horário, invadir a propriedade de um samurai e se arriscar até a ser morta se pensasse que era um ladrão. Ele suspirou, afrouxou o aperto no cabo da Verdadeira Lâmina da Serpente e foi até ela com pressa, um mau pressentimento fazendo seu coração bater rápido.
— Yus… Yusuke-san! — exclamou ao vê-lo. Segurava as partes inferiores do seu yukata como se para correr melhor, arfava de nervosismo e parecia tremer. — Vim correndo avisá-lo, eu não sabia a quem mais recorrer!
— Vem comigo. — Vendo como ela poderia acordar alguém a qualquer momento com sua agitação, Yusuke a trouxe até o portão de casa, pedindo que se acalmasse para dizer ao que veio. Mas ele próprio não estava calmo, se questionava o que de tão importante havia acontecido que não poderia esperar até a manhã seguinte…
— O Tetsurou-san, ele… Eu o vi pela janela enquanto terminava de fazer o jantar. Não entendi por que ele estava na rua tão tarde, mas observei melhor e percebi que carregava uma bolsa, como se estivesse indo para uma expedição. — Hana respirou fundo, uma pausa dramática pela visão de Yusuke, que já sentia nas tripas onde aquele assunto iria dar. — Ele estava indo em direção a Akayama. É muito perigoso, Yusuke-san! Sei dos atritos entre vocês, mas…
— Isso foi há quanto tempo?
— Não muito, eu… eu vi e corri direto para cá.
— Aquele imbecil escolheu subir a montanha agora?! — Ele esfregou o rosto com as mãos, estalando a língua em reclamação. Não estava mais falando diretamente com Hana. Saiu xingando aos ventos, resmungando enquanto dava voltas. — Aquele idiota… Lê tanto, mas parece não saber de nada!
Hana o alcançou, pela primeira vez tocando seu braço para chamar atenção ao que diria:
— Se quisermos trazê-lo de volta, precisamos sair imediatamente!
Isso fez o samurai voar de volta para dentro de casa sem nem pensar, deixando a garota para trás. Em situações como aquela, cada segundo importava. Vestiu depressa uma hakama escura e um kosode azul. Suas mãos, contudo, não chegaram a completar a volta da faixa do kimono. Olhou-se no espelho, piscando várias vezes ao reparar uma mancha minúscula sobre o peito. Esfregou o reflexo com a ponta dos dedos, tentando tirar a sujeira. Ela não saiu.
A ponta negra em seu peito não era uma mácula do espelho.
Ele tateou a pele, buscando significados, esfregando e conseguindo arranhões vermelhos por toda região irritada. Seu rosto ficava cada vez mais branco. A mancha parecia mais como uma marca de nascença do tamanho de uma pétala. Ela não saía, mas também não incomodava.
Olhando-a de novo, uma suspeita surgiu. Depois de ter chegado do santuário, havia ido tomar banho e, enquanto se lavava, percebeu uma pinta escura bem em cima do seu coração. Esfregou por pensar se tratar de sujeira, mas ela nem ao menos desbotou. Concluiu, então, que era tinta. De alguma forma, o pigmento acabou por penetrar nas camadas da pele. Não se preocupou, sairia com o tempo.
Entretanto, lá estava ela. E não era tinta. Tinta não crescia debaixo de pele, tampouco se tornava mais escura.
Sua respiração acelerou, a boca ficou seca. E se estivesse doente também? Não tinha tossido ou surtado como Mirai, e ninguém mencionou mancha alguma, mas e se os sintomas fossem diferentes para cada um?
— Preciso me acalmar. Preciso beber alguma coisa…
Ele se virou, mas precisou cobrir rapidamente o peito, pulando de susto ao se deparar com a mãe, como uma sombra, o espreitando silenciosamente à porta.
— Yusuke, ainda está acordado? — Akane sussurrou angustiada.
Seu coração parou, pensando no que poderia ter acontecido se não fosse por seu reflexo, cobrindo-se a tempo. Yusuke estava nervoso para conversar, tinha pressa para sair, mas Akane parecia preocupada e aflita. Será que tinha visto ou ouvido algo?
Ela o olhou de cima a baixo.
— Você já vai partir de novo, filho?
Yusuke estreitou os olhos.
Não queria que ela o visse sair. Pretendia voltar antes que notassem — não era sua pretensão deixá-la sozinha com Ryuji. Sequer cogitou que Akane poderia acordar e atrapalhar sua fuga.
— Eu queria ficar mais tempo, mãe.
— E por que não fica? Acabou de voltar — disse ela. E parou por um momento. Seu tom mudou ao desconfiar da aflição expressiva do filho. — Yusuke, o que você vai fazer?
— Eu preciso subir a montanha para resgatar uma… uma pessoa que se perdeu.
— A Akayama? Mas é de noite! — Ela diminuiu a distância entre eles, segurando seus ombros. — Você pode ir amanhã cedo. Por favor.
— Eu não posso, preciso ir agora.
— Meu filho, é perigoso! Você não conhece as lendas? Os demônios espreitam aquela montanha! Se você se perder também, eles vão…
Akane foi interrompida por um abraço do filho que a deixou estática, os braços retos ao lado do corpo. Ele não a soltou até sentir seus músculos relaxando, e então afastou-se para olhá-la nos olhos.
— Eu enfrentei guerras, mãe — disse devagar e enfático, tentando passar segurança. — Já matei pessoas piores que esses demônios.
— Mesmo assim… demônios têm poderes muito além do que você é capaz de imaginar, podem fazer muito mais que apenas machucá-lo.
— Não vão — ele disse. — Voltarei até o amanhecer, prometo não demorar.
Não pareceu surtir efeito, porque Akane ainda evitava encarar seus olhos.
— Yusuke — chamou ela, afiando o olhar. — Quem está perdido na montanha?
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