O clã Seki vivia na área nobre da vila, o mesmo lugar onde os Kou viveram no passado, até serem destituídos de suas posses pelas dívidas acumuladas. A caminhada de Tetsurou foi solitária, acompanhada da pequena Mirai em seu colo, adormecida na curva do seu ombro. Nuvens espessas cobriam as estrelas, deixando a lua opaca, escondida da chuva que viria. Seus passos deixavam rastros que seriam apagados quando o céu desabasse. Se antes tinha dúvidas que Yusuke as seguiria, agora sabia que as pegadas não passariam de pistas para a investigação de sua trajetória após sua morte.
— Nii-san, quando vamos chegar? — Mirai reclamou, a voz mole batendo no ouvido do curandeiro.
Tetsurou riu. Mirai sabia o quanto ele demorava quando não tinha ninguém para ajudá-lo em que trajeto seguir. Os caminhos eram todos iguais, o que prejudicava seu péssimo senso de direção. Os lábios murcharam em um sorriso melancólico ao pensar nisso — era mesmo bem possível que morresse antes de chegar ao seu objetivo. Mas como poderia deixar de tentar?
As pessoas morrem.
Mas elas ainda estão vivas.
Àquela hora, era comum os senhores e senhoras mais velhos estarem conversando do lado de fora de suas casas, enquanto os jovens retornavam, ansiosos por uma refeição caprichada após mais um dia de trabalho. Mas agora só havia seus passos, o timbre da sua voz e a respiração rouca de Mirai. Os habitantes mantinham a lareira baixa para não denunciar que ali havia pessoas, e as janelas também permaneciam fechadas para concentrar o cheiro de gergelim e peixe das sopas. Tudo para distraírem a fúria do Youkai para a casa de um aldeão mais azarado.
Ajeitou a pequena nos braços já adormecidos e doloridos, segurando-a mais forte quando ela ameaçou tossir.
— Estamos quase lá, Mirai-chan.
Tetsurou soube estar perto quando enxergou as altas copas das árvores que cultivava dentro dos muros da casa dos Seki.
Como as residências nobres construídas na vila tinham a mesma estrutura básica ao estilo washitsu, poucas coisas da mansão Seki se destacavam das outras. O jardim era o diferencial. Nas outras residências, a área externa tinha somente um lago com uma fonte de bambu e poucas árvores perto dos muros. Porém, na casa do clã Seki, espaço de sobra era incomum. Plantas, flores e ervas de todos os tamanhos, cheiros e gostos varriam a extensão de terra da propriedade. Podiam ser ingeridas, maceradas para banhos ou pomadas, usadas em processos de cura, ou na fabricação de incensos. Com tudo isso à disposição, Tetsurou fazia remédios e chás que se tornaram famosos pela divulgação boca a boca. Às vezes, até recebia pessoas de longe atrás das suas mãos curadoras e das infusões que prometiam afastar doenças mortais. Ele era um talento nato; só de olhar dava para perceber. E quem fosse ainda mais sensitivo, notaria a aura de luz branca que se expandia em vários metros de altura e largura.
Perdê-lo para a Akayama seria uma lástima.
Ao chegar, retirou as sandálias na entrada e subiu direto para o quarto de sua irmã, tomando cuidado para não ranger a madeira e acabar acordando alguém, mesmo não sendo tão tarde. Abriu o shōji e entrou no quarto, deparando-se com olhos estreitos o encarando.
— Onde você esteve, Tetsurou?
A voz fria como de costume era da sua irmã mais velha, Kiri.
— Eu levei a Mirai no templo de Inari, Kiri-onee-sama — respondeu, se ajoelhando para colocar a irmã caçula no chão e fazer uma reverência para a mais velha.
Kiri o olhou de soslaio e suspirou alto, sem se curvar. Mas Tetsurou não se ofendeu. Ficaria surpreso se, de repente, Kiri ou qualquer outra das quatro irmãs decidissem respeitá-lo minimamente. Não importava se chegasse muito cedo ou muito tarde, qualquer atitude servia como pretexto para a raiva que as irmãs tinham dele. Tirando Mirai, é claro, elas o degradavam desde que se lembrava, cada uma se empenhando em excluí-lo da família de forma mais transparente, como Kiri fazia, ou então sendo traiçoeiras como raposas. Sinceramente, Seki Tetsurou preferia ser desafeto de pessoas como Kiri, pois para ele era difícil diferenciar um sorriso docilmente sorrateiro de um genuíno. E mesmo que as energias delas o mostrassem a verdade — que todas o odiavam na mesma intensidade —, ainda tinha esperanças, ao ser falsamente bem tratado, que elas pudessem mudar de ideia e gostar só um pouquinho dele.
Apesar de ser o único com direito aos bens por ser homem, ele não era assim tão ruim, era?
— De novo? — Kiri não conseguiu ficar quieta ao constatar os desenhos assimétricos em cinza e verde do kosode cobertas de sangue, e a mão de Tetsurou fazendo pressão na ferida, já não tão feia assim. — Você é mesmo um inútil, como não conseguiu se proteger de uma garotinha? E como ainda pode deixar que isso aconteça com ela?
A expressão preocupada de Kiri se transformou, cólera deixando as linhas do rosto marcadas ao fitar a irmã zonza no chão, toda suja e corada de febre.
— Veja o estado dela! E você ainda a levou para dar uma volta?
— Ela quis ir.
Kiri inspirou o ar profundamente.
— Nós temos que conversar.
— Eu vou colocá-la para dormir e podemos nos reunir…
— Espero que seja a última vez, Tetsurou. — E fechou o shōji com violência, sem se importar que a menina tivesse voltado a tossir naquele instante.
Mirai foi instruída a se deitar no futon, ficando com as costas erguidas. Em seis meses tratando a doença, nenhuma vez a crise deu lugar à transformação numa mesma noite. Tetsurou só precisava se preocupar com a tosse e febre, que iriam persistir até de madrugada. Quando não tossia, o peito fazia um chiado que ia e vinha. Tetsurou deixou a maleta de madeira com seus utensílios ao lado, abrindo e esquentando o chá para dar à irmã. Segurou as mãos miúdas dela, apertadas em seu peito, e olhou-a nos olhos.
— Respire. Lembra-se do que deve fazer… Do que o nii-san te ensinou?
Ela tinha dificuldade para responder, contendo a tosse para inspirar. A voz saiu num fio:
— Respirar… fundo…
Tetsurou ofereceu o copo de porcelana, a incentivando a levar até a boca com a mão sobre a dela. Progressivamente, o chá voltou a fazer efeito. Ele acariciou as costas da pequena e a tranquilizou com palavras. Minutos mais tarde, o bocejo límpido dela se misturou ao som das cigarras do jardim.
O olhar atordoado de Mirai rolou até o pescoço do irmão. Orvalhos de lágrimas brotaram em seus cílios.
— Nii-san, eu te machuquei?
— Não. — Ele não conseguiria dizer a verdade. — Um pequeno monstrinho apareceu depois que você desmaiou. Ele era bem forte, vê? Graças ao Yuu-chan e sua espada, nós estamos a salvo.
— É… mesmo? E dói muito?
Tetsurou tirou suavemente a mão do machucado, feito pelos dentes dela.
Quase não se via mais as marcas.
— Foi tão fraquinho que já está sarando.
Ela suspirou. Alívio por não ter sido ela, alívio pelo irmão não estar sofrendo porque aceitou levá-la até um de seus lugares preferidos de Ise. Mas graças a isso, Kiri iria importuná-lo por semanas. Um crescente senso de proteção substituiu o alívio que a menina sentia, trazendo a inconstância infantil à tona.
— Vocês vão brigar de novo? — ela perguntou.
— Não, Mirai, vamos só conversar.
— Se a nee-chan brigar com você, vou fazer ela se arrepender… — Ela bocejou. — Com meu fogo de raposa!
Tetsurou riu.
Sempre que podia, narrava histórias sobre Youkais para Mirai antes de dormir, mas ela dificilmente adormecia. Os contos eram bem mais interessantes. Por isso, suas irmãs também ficavam furiosas com Tetsurou. Mas não tinha o que fazer: tornou-se uma rotina da qual Mirai não renunciava de jeito nenhum.
— Eu não duvido disso. Mas você não é uma kitsune, Mirai-chan — disse ele, tateando a parte de trás do cabelo dela. — Ao menos, não sinto nenhuma orelha aqui.
Ela levou as mãos pequenas até a cabeça, verificando se não havia mesmo alguma orelha felpuda perdida entre os fios, e ao chegar na mesma conclusão, bufou exasperadamente.
— Então as raposas vão bater nela por mim.
Tetsurou empurrou uma mecha para trás da orelha dela. O toque cálido deixou um rastro de amor.
— Kitsunes não protegem humanos, Mirai… Nem quando se apaixonam por eles. Lembra-se da história da Tamamo-no-Mae?
— Lembro! — Mirai chegou a erguer a coluna. — Ela sugava a vida do rei, mesmo gostando muito dele.
Ele sorriu.
— Kitsunes podem ser boas ou más, embora a maioria seja traiçoeira. Mas mesmo se apaixonando por um humano, se ficarem perto… sugam sua energia até a morte. Que nem aconteceu com a Tamamo-no-Mae.
— E se elas não quiserem sugar a energia?
— Faz parte da natureza delas, não há como evitar.
— Poxa… — Mirai fez bico. — Eu não quero mais ser uma kitsune. Elas comem humanos também? — Mirai murmurou a última parte, como um segredo.
— Não comem, mas são perigosas do mesmo jeito — ele respondeu no mesmo tom sussurrado. — Elas são extremamente inteligentes, então você deve tomar cuidado.
— E se eu vir uma?
— Hmmm, só não se apaixone por ela, está bem? — Tetsurou riu.
— Eu nunca vou me apaixonar, isso é nojento!
— Kitsunes adoram nos enganar e pregar peças, então apenas… não caia nos jogos delas.
Mirai sorriu satisfeita, dando mais um bocejo e se ajeitando no futon. Pensou que ela estivesse tão cansada que seria incapaz de pedir por uma história, mas Tetsurou se enganou. Assim que se aconchegou, insistiu que contasse de novo sobre a Tamamo-no-Mae. Com mais três pedidos, já poderia considerar a favorita da pequena. O irmão então contou a história de como a kitsune foi libertada após morrer por tomar a energia vital de um rei. Primeiro, ela fez isso por vingança, se aproximando dele até terem um relacionamento, mas depois se deu conta de que o amava. Quando terminou de recontar, Mirai já respirava profundamente.
Tetsurou a admirou de olhinhos fechados. Como gostaria que aquela não fosse a última história sobre Youkais que contava para ela…
Depois de se certificar estar tudo bem pela última vez, era hora de conversar com Kiri. Não podia se atrasar, já que desejava subir Akayama ainda naquela noite. Antes de se levantar, entretanto, sentiu algo segurar a manga do seu kosode.
— Nii-chan, eu te amo.
Tetsurou olhou Mirai fixamente, sentindo o peso das palavras. O quanto significavam, abrigando sua solidão e formando um nó na garganta. Havia perdido tudo aos três anos. Foi abandonado e adotado por pais que o viam como a única oportunidade para continuar a linhagem do clã. Exceto pela mais nova, os senhores Seki tiveram cinco filhas que o detestavam por ser o garoto adotado que tomaria a herança que deveria ser delas por sangue. Mirai era a única que cuidava dele e o amava, depois que Yusuke se foi de sua vida, há dezesseis anos.
Segurando o choro, deixou um sorriso inocente escapar, o coração se apertando de forma insuportável.
— Eu também te amo, Mirai-chan. — Ele se inclinou e depositou um beijo na testa da irmã. — Agora durma, você precisa descansar.
Antes de partir, precisava se certificar. Olhou para ela.
— Sabe como preparar o chá, não sabe? — Ela murmurou que sim, sonolenta. — Promete que vai amar também as árvores e as flores do nii-chan? Para que elas cresçam e prosperem, assim como você?
Ela balançou a cabeça.
— Vou amar. Vou cuidar. Elas vão crescer… que nem eu.
E adormeceu assim que respondeu.
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