A testa de Yusuke se contraiu mais enquanto ele dizia:
— Você inventou essa história toda sobre procurar Youkais para conversar comigo?
— Eu não inventei.
— É mesmo o melhor jeito de chamar a minha atenção.
— Eu não inventei nada, Yuu-chan…
Yusuke não se importava com o que se passava naquela cabeça de Seki. Não se importava com o que diria. E nem queria saber. Tudo que viesse dali teria relação com aquele clã e onde aquela família estivesse, Kou Yusuke estaria do lado oposto.
— Diga logo o que você quer, Seki. Eu não tenho a noite toda!
— Mirai está doente, como você pôde testemunhar agora há pouco. Ela tem crises de tosse, fica com febre e então… — Ele deixou o silêncio completar. — O que quer que seja, já se proliferou pelo vilarejo. Estou tentando abafar o assunto para não gerar uma onda de pânico, mas no ponto em que estamos, é só questão de tempo. Nem o santuário é seguro, as pessoas ficam fora de si mesmo diante da imagem de Inari. Precisamos encontrar a origem antes que a epidemia se espalhe e acabe com tudo. Algumas pessoas relataram ter escutado barulhos estranhos na noite em que isso começou… como uma carruagem. O senhor do clã Shiro foi o primeiro a falecer. Eu ainda não fui atingido, mas do jeito que a progressão é rápida… suspeito que seja…
— Obra dos Youkais? — Yusuke completou com desdém.
Não demoraria para ter que expor a realidade, nua e crua, aos olhos de Tetsurou: havia guerras para se preocupar, então por que tomar tempo pensando em seres irreais? Mesmo que vivessem na posse de um daimyō consideravelmente pacífico, constantemente tinham que se proteger de ataques externos. Cada vez mais clãs batalhavam para expandir seus domínios, e Yusuke tinha certeza de que o vilarejo não permaneceria intocado por muito tempo. Depois de tanto viajar por entre outras vilas, sabia que o daimyō tinha mais inimigos do que amigos.
Tetsurou precisava acordar para a realidade.
— Você iria dizer isso também, Seki? Acha que é obra de espíritos?
Ele não respondeu.
— As pessoas ficam doentes, é algo comum de acontecer! — Yusuke falou mais agressivo.
— É diferente dessa vez. Eu… eu sinto. Você viu.
— Não chame de diferente só porque não conhece o antídoto! Pare de acreditar nessas bobagens!
— Não são bobagens. Você deveria ter o mínimo de respeito, você pode…
— Respeitar, Tetsurou? Não tenho de respeitar algo que não existe.
Tetsurou deixou Yusuke se acalmar e só então, com toda paciência, voltou a falar:
— Já tentei de tudo, Yuu. E quando eu digo de tudo, quero dizer que já naveguei além de Yoshida buscando uma erva que fizesse efeito, mas nada funciona. O máximo que consegui foi um chá para aliviar a dor, afastar os efeitos por um tempo. Mas… se eu não encontrar a cura a tempo… Mirai vai… ela vai…
O contato visual que Tetsurou manteve durante até ali se quebrou. Ele baixou a cabeça.
O rumo da conversa não estava agradando Yusuke. Lidar com a morte era doloroso, mas se havia aprendido algo como samurai era que a vida é tão frágil quanto uma pétala de cerejeira. Escorregava, se perdia e ressecava em um piscar de olhos. Era impossível salvar todas as flores, a morte fazia parte do processo natural. Tetsurou precisava aceitar. Nem tudo estava ao alcance do seu poder de cura.
Por mais que tentasse negar… ele teria que se conformar com o inevitável.
— As pessoas morrem, Seki. — Olhava para o antigo amigo com a mesma intensidade de suas palavras. — Eu já vi pessoas morrerem e eu matei pessoas. Você não sabe o que passei enquanto treinava, enquanto enfrentava a realidade da nossa nação. Você tem que aceitar, porque se você já tentou de tudo e nada funcionou… Não há mais nada que você possa fazer, Tetsurou.
Tetsurou o encarou durante longos segundos. Não estava esperando que ele falasse de modo tão frio sobre algo tão sensível, como se não se tratasse da vida de uma criança. Da vida de uma população inteira. Então sorriu sem vontade, desânimo preenchendo cada linha.
— Eu fui inocente em pensar que poderia contar com você para… isso. — A decepção era evidente em sua voz. Yusuke se surpreendeu com a mudança brusca do tom ameno para aquele. — Foi uma péssima ideia. Mas vou provar para você, Yuu-chan, que estou dizendo a verdade quando eu voltar da montanha e salvá-los.
A última frase o fez empalidecer.
Voltar? Ele pretendia subir…
De que montanha ele estava falando? A única montanha que tinha por perto era…
— Você enlouqueceu? — vociferou. — Você pode se perder e morrer lá. Sabe como é perigoso!
Tinha que ser um blefe. Subir até o topo era um tabu conhecido, inúmeros acidentes serviram como alerta. Animais, ladrões e até samurais desonrados se escondiam por lá, esperando por um idiota corajoso. Era loucura, era…
— Bom, as pessoas morrem — disse Tetsurou.
— Não.
— Não foi o que você acabou de falar?
— Eu disse, mas não foi assim. Você sabe os riscos. É suicídio.
— Se eu morrer, ao menos morrerei sabendo que tentei de tudo para salvar a minha irmã. Eu faria o mesmo por você.
Yusuke arqueou as sobrancelhas.
— Pare de falar besteiras, Seki.
— É a verdade. Eu faria por você.
Yusuke virou o rosto, deslizando os olhos para longe dos dele. Massacrando o que a frase provocou no seu interior.
— Acha que gosto de ouvir que se colocaria em risco por mim? — Yusuke lançou-lhe um olhar irritado. — Mas que merda! Você não consegue só ficar nesse vilarejo e evitar confusão? Você não pode fazer nada, não se mate tentando salvar o mundo, isso está além da sua capacidade.
A conversa não se alongou mais, já estava muito escuro. Yusuke acompanhou as costas do curandeiro descendo as escadas até o sopé. Mirai ainda estava adormecida em seu colo, mas demonstrava sinais de estar perto de recobrar a consciência. Chegando na entrada que levava ao templo, Tetsurou olhou para trás e Yusuke mais uma vez ergueu muros grossos entre eles. A expressão do curandeiro era dócil como antes. Solitária como antes.
Eles se encararam.
— Você não deveria se arriscar à toa. — Só depois de falar, Yusuke percebeu o que tinha acabado de sair da sua boca.
— Foi bom ter conversado com você, Yuu-chan, mas não precisa fingir que se importa.
Yusuke ficou parado, os seus longos fios negros acompanharam a brisa que os alcançou, mas sem bagunçar o cabelo. Tetsurou estava certo: ele não se importava. Mas não podia ignorar os calafrios que o percorreram, tendo a certeza de que o mimadinho iria mesmo morrer na montanha. Ele sempre foi teimoso e obstinado. Testemunhou naqueles olhos claros o que muitas vezes viu na infância. Quando decidia o que era certo, não havia pessoa que o convencesse do contrário. Nem mesmo Yusuke.
Respirou fundo, tentando ignorar os sinais de enjoo que a garganta ensaiava por ainda estar conversando com Tetsurou. A forma como ele pensou que poderia compartilhar dos mistérios da montanha, como se ainda fossem amigos, o irritava. Irritava mais ainda saber que, mesmo não sendo de sua obrigação, deu conselhos e foi totalmente ignorado.
Para Yusuke, o desafeto estaria fazendo um favor se nunca mais voltasse.
— Você se esquece que não somos mais amigos — disse ele. — Só me diga quando você pretende subir a Akayama, porque eu sou o samurai desse vilarejo. Se você sumir por mais de sete dias, serei eu a ir atrás do seu corpo para entregá-lo à sua família.
Tetsurou continuou o encarando, inexpressivo.
— Comece a sua contagem — respondeu, mas sem qualquer tom provocativo. Na verdade, ele soava melancólico. — Caso me ache morto, vou deixar um papel com as instruções do que deve ser feito para livrar o vilarejo dessa praga. — Ele se curvou por longos segundos, segurando Mirai forte rente ao corpo. — Obrigado por me ouvir.
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