Tetsurou a segurou firme. Ou tentou. A menina se debateu, negando o toque a qualquer custo. Não só isso: começou a atacar com unhas que não eram mais unhas, mas garras afiadas, pretas como as de um cadáver. Veias negras apareceram sob a pele branca, e em determinado momento, Mirai cuspiu uma secreção escura no chão. Então voltou a atacar o irmão. Batendo, socando, rasgando.
Um som de rasgo fez Yusuke dar um passo adiante, vendo a menina reduzir a manga do kimono do irmão a pedaços. Por sorte, foi apenas o tecido. Suas unhas, feito facas, cortavam com facilidade enquanto ela uivava e se contorcia e batia. Yusuke imaginou o estrago que poderiam fazer… e fizeram.
Os olhos do samurai se arregalaram, seu estômago revirando de adrenalina e as pernas amolecendo como a cabeça de uma água-viva. A parte exposta da pele de Tetsurou era uma tela de pintura para vergões recentes e machucados mais antigos, prestes a se curarem, um sobre o outro, em pinceladas brutais e dolorosas. Horrível de ver. Hematomas que não vinham de qualquer doença — hematomas criados porque o curandeiro se arriscava a segurar os infectados do vilarejo, enquanto outros covardes observavam sem se intrometer.
O tempo de Yusuke permanecer como estátua durou até ele entender o que estava acontecendo. Até ver os machucados e testemunhar Mirai ficando cada vez mais louca.
— Tetsurou, se afaste — sentenciou, fazendo um movimento com o dedo que tirou a katana alguns centímetros da bainha. O brilho azul apareceu tímido à noite.
O ínfimo som metálico entrou cortante pelos ouvidos de Tetsurou. Seu corpo paralisou tão logo notou o que Yusuke estava prestes a fazer.
— Yusuke, não! Ela está doente! — Com os braços abertos, Tetsurou se colocou entre os dois. Precisou soltar Mirai para isso. Foi um erro.
— Cuidado!
O alerta de Yusuke não o alcançou a tempo. Mirai aproveitou a guarda baixa do irmão mais velho, avançou contra suas costas e mordeu o pescoço.
Sangue escorreu instantaneamente. Ele gritou de dor, se desequilibrou e quase despencou no chão, mas conseguiu se apoiar nos cotovelos enquanto o líquido vermelho pingava mais conforme os dentes afundavam na pele.
Mas que diabos…?
Yusuke não sabia o que ela se tornara, mas Mirai estava longe de ser uma garotinha indefesa. Ele, por outro lado, estava longe de aguentar olhar sem fazer nada. Seu trabalho comum, no entanto, não era conter; era matar. Teria que tomar o dobro de cuidado. Por isso não desembainhou a Verdadeira Lâmina da Serpente e nem a wazikashi, mas avançou para conter a garota, para ao menos tirá-la de cima do curandeiro.
A parte externa do kimono de Tetsurou foi tirada devagar, ele a jogou como pôde na direção do samurai, aguentando com dentes cerrados e olhos fechados os socos e a mordida. Yusuke assimilou a cena. Pegou o tecido de seda fina, esticou, e veloz como um raio, enlaçou a testa de Mirai. Ela desmontou do irmão quando Yusuke puxou o tecido, rugindo e se movimentando enlouquecida. Mas isso só durou um segundo. Kou Yusuke usou o pano para atá-la inteira, prendendo o corpo e cobrindo a cabeça. Se arrastando, Tetsurou usou dois dedos rígidos para atingir o chi do meio do peito.
O mesmo método de contenção usado com a Hana quando eram crianças. O tempo havia passado, mas sua memória muscular permanecia fresca.
Então ela caiu desacordada.
Depois do que pareceu o tempo de um incenso, Yusuke decidiu falar, entre arfadas nervosas:
— O que foi isso?
E o que é isso? Quis completar ao se deparar de novo com os machucados grotescos na pele do braço do Seki, mas quando abriu a boca para dizer, um pano branco irrompeu na frente. Tetsurou pegou de volta seu kimono e agora conferia se Mirai havia se machucado.
Isso explicava a quantidade de sangue, velas e incensos no santuário. Hana não tinha mencionado os sintomas que faziam a doença ser tão perigosa e temida. E se perguntou se era porque ela não sabia. Se era porque Tetsurou estava escondendo a extensão da doença, inclusive cobrindo muito bem seu próprio corpo para ninguém reparar, controlando os enfermos com seus chás. Fazendo as pessoas dormirem para não acordarem e virarem monstros.
Mas já estava saindo do seu controle — e isso era o mais anormal de tudo.
— Você está com dois buracos enormes no pescoço — Yusuke voltou a dizer, sobre a vozinha interna o mandando ficar quieto —, deveria se preocupar em cuidar disso primeiro.
A menção do ferimento causado por Mirai fez Tetsurou dedilhar o pescoço, como se tivesse se lembrado dele só então.
— Ah, isso… — Observou a ponta com sangue no dedo e limpou como se não fosse nada. — Não se preocupe, Yuu-chan. Os dentes dela ainda são pequenos.
— Me preocupar? Não entenda errado. — Yusuke se apressou em cuspir as palavras. — Isso pode manchar a minha reputação.
O que faria se corresse por aí que ele não impediu uma garotinha de atacar Tetsurou? Ainda que fosse mais complexo que isso, não haveria quem acreditasse na sua versão. E mais uma vez, um Seki poderia destruir tudo o que construiu por anos.
Desacordada, Mirai era como uma boneca indefesa. Sem machucados, porém ainda respirando com dificuldade. Pelo pouco que conhecia, Tetsurou tinha tocado um dos pontos vitais do corpo, fazendo com que ele parasse — mas a doença, ou seja lá o que fosse aquilo, ainda se manifestava. O peito da irmãzinha rangia como uma porta velha abrindo e fechando, como se ratos tivessem se instalado em seus pulmões. Seus dedos tremiam e Yusuke percebia as veias do seu braço saltadas, negras.
Diante disso, ele só conseguiu dar três passos para trás, temendo que fosse contagioso.
Por outro lado, seu irmão continuava como um urso protetor em cima dela, arrastando para perto um recipiente de madeira do qual tirou vários utensílios de dentro. Yusuke assistiu suas costas, os braços se movendo com uma delicadeza controlada, resmungos de dor vez ou outra preenchendo o silêncio. Segundos depois, apareceu com uma xícara fumegante. Ele enfiou as mãos por debaixo das costas de Mirai, subindo o tronco, e fez com que ela inalasse a fumaça. Em todo momento, segurando as mãozinhas dela como se para ancorá-la ali.
Foi como mágica. Imediato. Os sintomas retrocederam como se tivessem encontrado o seu inimigo mais perigoso, como se a fumaça tivesse penetrado e escaldado seu interior em limpeza. Pele branca, olhos normais — como Tetsurou tratou de conferir — unhas curtas e respiração longa e limpa. Só uma garotinha indefesa e doente agora. Por conta de um maldito chá.
Os olhos de Yusuke se abriram em surpresa. Conhecia seu talento na medicina, mas havia sido muito rápido.
A xícara de porcelana foi posta no chão. Tetsurou aconchegou Mirai no colo, encaixando as pernas dela em sua cintura, a cabeça pendendo na curva do pescoço mordido. Enquanto a abraçava e se ajeitava para levantar, Yusuke pensou se não era perigoso deixá-la tão perto do machucado. Então recebeu um olhar de Tetsurou, surpreso pelo samurai ainda não ter ido embora.
— Sei que como samurai, você deveria ter… — Tetsurou disse, pensando no assunto. — Eu sei o que você deveria ter feito. E não fez. Obrigado, Yuu-chan.
— Não me chame de-
— Mas, bem, que tal me ajudar a procurar o verdadeiro causador disso? — interrompeu. — Ainda deve estar por aqui.
Assim que Tetsurou terminou de falar, algo deve ter ouvido suas palavras, pois se certificou de mostrar que estava certo. As folhas sequer se mexeram, mesmo com a corrente de ar que as atingiu. Nem das árvores, nem da grama, nem dos arbustos. Tudo ficou no mais completo silêncio. Exceto por uma pisada em falso num galho, a qual os ouvidos bem treinados de Yusuke escutaram nitidamente.
— Yuu-chan? O que foi?
O samurai ignorou, focando a atenção nos arbustos que davam para a floresta. Tinha a mão fixa na espada, deslizando-a da bainha ao empurrar a guarda — o disco de ferro — com a ponta do polegar. Tentou captar algum ruído, mas não houve qualquer sinal de movimentação. Mergulhou a katana de volta para seu lugar e suspirou.
— Pode ser o Youkai! — Tetsurou se movimentou para ir atrás, mas quando foi atravessar Yusuke, encontrou a espada de aço-azul do samurai tocando seu queixo, impedindo a passagem.
— Tsc. Você realmente acredita que isso foi uma possessão de Youkai?
— O que mais poderia ser?
— Algo real. Simplesmente. Uma ameaça de verdade.
— Você acabou de ver o que aconteceu com a minha irmã — disse Tetsurou, usando um braço para segurar Mirai e o outro para baixar suavemente a espada com um dedo. — Fora eu, é a única pessoa que sobreviveu para contar o que acontece de verdade. Como explicaria o que acabou de ver, então?
— Você é o curandeiro — o samurai disse o óbvio num tom impaciente. — Se não sabe explicar, então fique calado. A menos que mentir seja algo que você saiba fazer melhor do que curar, não é?
Se havia qualquer coisa que Tetsurou quisesse dizer em defesa, ele engoliu. Engoliu e sentiu como se pedaços minúsculos da lâmina de Yusuke tivessem contaminado sua saliva.
A espada foi recolhida, voltando para a cintura do samurai; o curandeiro virou e mexeu nos próprios dedos. Desarmado. Culpado.
— Acredite em mim… estou te dizendo que isso é feitio de um Youkai. Eu nunca vi, assim como você. Mas eu sinto.
Desde que regressou, tudo o que ouviu falar foi sobre Youkais. Era uma fascinação sem cabimento. Sem sentido. Youkais eram demônios. Por que as pessoas faziam tanta questão de acreditar no além para matar, devastar e assustar os humanos, quando os próprios faziam isso tão bem?
Virar as costas e ir embora era a melhor opção. A pior era colaborar com aquela história de monstros. Mas então seus olhos esbarraram na garotinha desmaiada no colo do irmão, dormindo profundamente. Uma criança doente que, apesar de nova, não tinha muito tempo de vida.
Tsc.
Fechou os olhos e se amaldiçoou pela decisão. Sem falar nada, pisou contrariado e foi verificar a região atrás de seres que não existiam para, assim, salvar a irmã de seu ex-melhor amigo, filha da família que ele odiava.
Quando voltou cinco minutos depois, não tinha visto nada, é claro.
Tsc.
— Já chega — disse ele, bufando de cansaço. — Se houvesse mesmo algo, já teria me atacado. Vamos voltar.
O suspiro longo de Tetsurou fez Yusuke enrugar a testa.
— Yuu-chan, desculpe por isso.
— Por estar me fazendo perder tempo com você?
O olhar descontraído de Tetsurou havia o abandonado. Tudo o que Yusuke enxergava, com o mínimo de luz que o fogo da lanterna oferecia, eram rugas em sua testa. Ele conhecia aquela expressão, era a mesma de quando Testurō estava planejando algo na infância.
— Tenho… algo para te dizer. — Ele mordiscou os lábios. — Poderia me escutar por um instante antes de ir?
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