Eles brincavam nos bosques abertos do vilarejo, correndo entre as casas e ruas do comércio, nadando no riacho e escalando árvores para ver quem conseguia ir mais alto. Sem concorrentes à altura, Yusuke ganhava enquanto Tetsurou dava seu apoio moral com os pés bem firmes no chão. Mimadinho, as outras crianças pensavam, irritadas, porque o herdeiro dos Seki não podia calejar suas mãos e arriscar arranhar a pele imaculada. Antes Yusuke o defendia; agora concordaria sobre ele ser um merdinha mimado que não sobreviveria nem um dia fora dos muros do seu palácio.
Mas todo receio que Tetsurou tinha em subir em uma árvore desaparecia quando ficavam só os dois, investigando os cantos não-tão-inexplorados-assim da mata. Enquanto um se fazia de corajoso, fingindo que galhos eram espadas, o outro ia lento e sempre atrás, parando a cada minuto para prestar atenção na flora local ou descansar os pés delicados. Embora hoje Yusuke seja a imagem da impaciência, naquela época deixava o outro demorar o quanto quisesse, sem ficar emburrado ou gritar com ele.
Numa dessas aventuras, acharam uma escadaria de pedra e subiram. Atravessaram quatrocentos e setenta e um portais vermelhos enfileirados, um atrás do outro, por duas horas pelo percurso no sopé da montanha Akayama — teria sido menos se Tetsurou não fosse tão lento, os pés sangrando por qualquer coisinha que pisava. Duas crianças mortas de cansaço, mas cheias de curiosidade a fim de descobrir o que havia além das estátuas de raposas lá em cima. Foi o que moveu cada um até o último portal que separava o mundo dos homens daquele onde moravam os Deuses. Suspiros de encantamento deixaram seus lábios ao encontrarem o que parecia um oásis no meio de árvores e grama e folhas e mais folhas. Era o santuário de Inari Ōkami, símbolo da prosperidade e protetora do cultivo do arroz — e o mais novo esconderijo da dupla. A partir dali, era onde aconteceriam seus encontros secretos e brincadeiras, acabando com a paz dos sacerdotes da Deusa.
O que antes era um templo tranquilo virou uma bagunça. Eles corriam, subiam nas plataformas mais altas e fuxicavam os objetos sagrados. Os sacerdotes temiam que, mesmo sem intenção, a vulgarização dos símbolos divinos pudesse atrair má sorte para o vilarejo. Não foram poucas as vezes que Tetsurou e Yusuke foram castigados com vassouras de palha, mil broncas sendo despejadas sobre eles. Quando perceberam que não adiantava, os servos da Deusa tentaram um método diferente.
Em questão de dias, ambos aprenderam a orar, fazer oferendas e meditar. Só precisaram de algumas das raposinhas que rondavam por ali para convencer os meninos a cultuarem Inari da forma correta.
Ninguém soube o que aconteceu, mas as raposas começaram a desaparecer, até sumirem completamente. Isso intrigou os sacerdotes, imaginando que fosse sinal de mau presságio. A presença daquelas crianças estava irritando a Deusa!
Ainda assim, Yusuke e Tetsurou não deixaram de rezar, muito menos de brincar. Adoravam imitar a coreografia da sagrada dança Kagura apresentada em festivais, e tentavam aplicá-la, sem sucesso, no palco do templo. Pegos no flagra pelos sacerdotes, repetiam as mesmas ações: prometiam parar, mas assim que lhes davam as costas, riam travessos e voltavam a correr até cansar. Deitando-se na escada de madeira do oratório, conversavam com a Deusa por horas olhando para o céu.
— Ela gosta das brincadeiras — dizia Yusuke, vendo como Tetsurou se encolhia todo após as broncas.
— Você acha? Os sacerdotes dizem que não.
— Eles não sabem de nada.
Mas aquilo foi há muito tempo.
Não parecia haver mais sacerdotes morando no templo, mas alguém estava cuidando com muito zelo de cada parte; desde a madeira lustrada até as estátuas polidas. E mesmo assim, tudo continuava silencioso e vazio, como da última vez que o havia visitado, antes de partir para a guerra. Tão diferente daquela época…
Os dedos de Yusuke se apertaram contra o que segurava. Aquilo era passado. Ele e Tetsurou… se afastaram há muito tempo. Tetsurou vivia sob o mesmo teto daquele clã asqueroso que depenou sua família como se fossem galinhas. Sabendo o que passou nas mãos do garoto, a chance de ele ter se tornado igual aos familiares era alta. Mas Yusuke não tinha como ter certeza.
Não conseguiu evitar lembrar do que o pai havia dito.
Ele está bem melhor desde que você foi embora.
Esmigalhou a curiosidade de saber como ele estava de verdade. Se esforçou muito para deixar o antigo amigo esquecido e abandonado, assim como aquele templo estivera há três anos, sem chance de ser resgatado. Mas ali estava o perigo de voltar a Ise: a maioria de suas lembranças em torno do vilarejo eram ao lado de Tetsurou.
Seria impossível mantê-lo enterrado onde por tanto tempo permaneceu.
Antes de chegar até o altar de rezas e oferendas, um foco de luz alaranjado queimou sua visão, tentando competir com o astro adormecido. Yusuke piscou, parando para observar melhor. A claridade nada mais era do que a reunião de várias pontas de vela cintilantes, derretendo a cera até que se formasse uma crosta tão grossa que foi impossível não se perguntar quando o altar de Inari se tornou tão disputado. À medida que se aproximava, notou também os incensos. Vários deles de pontas ainda vermelhas, lutando para elevar suas preces. A fumaça fez Yusuke tossir, mal-acostumado com o odor forte, a chama ardente e a falta de espaço para a sua oferenda.
Mesmo que fosse esperado que adorasse Yawata no Kami por ser uma referência aos samurais ao proteger os guerreiros, a afeição de Yusuke pela Deusa patrona de sua vila era muito maior. Seu carinho por Ela estava acima de brigas e obrigações. Antes de embarcar na jornada de guerra pelo daimyō daquelas terras, Yusuke havia ido até o templo para pedir proteção a Inari. Por mais cético que fosse, era nela que pensava quando passava por momentos angustiantes, como quando precisava de forças e não havia ninguém para lhe erguer a mão. Era uma memória afetiva estimulada desde cedo da qual não conseguia se desvincular. Depois que orava para Ela, seu peito ficava mais leve, tornava-se mais fácil tomar decisões.
Mas não estava sendo assim.
Ele se ajoelhou e fez uma oração silenciosa, rápida, sem dar tempo de o corpo curvado esquentar o chão. Sentia-se incomodado, como se algo estivesse fora do lugar. Daquela posição, buscando o silêncio para terminar de oferecer o pote de arroz à Inari, os olhos castanhos capturaram a terceira coloração viva, quente, do vermelho-rubro que conhecia tão bem. Aos seus pés, marcas de sangue recentes e desgastadas, uma sobre a outra, formavam um caminho de rastros adiante e, como Yusuke descobriu, desciam até as escadas por onde veio.
Sangue estava longe de ser uma oferenda aceitável, ou sequer tolerável, logo a hipótese foi descartada.
Tudo parecia… tão caótico quanto naquela época.
A primeira vez que Yusuke viu a devastação não foi pela espada de samurais batalhando por seus daimyōs. A doença ceifava mais vidas do que ele podia contar nos dedos das mãozinhas — das dele e das de Tetsurou. A morte das pessoas era lida por eles de maneiras opostas: enquanto o Seki fazia de tudo para ajudá-las a se recuperar, Yusuke torcia para que fizessem a travessia, pois assim o sofrimento teria um fim. Mas não conseguiu desejar o mesmo quando foi Hana a adoecer.
Eles eram apenas crianças. Ainda assim, os dois permaneciam segurando a mão dela mesmo quando a lua subia e as crises começavam. Seu corpo se debatia, os olhos reviravam e as mãos entortavam como garras. Era tão frequente que ele e o Seki desenvolveram uma técnica para conter as lesões da menina, fruto dos próprios espasmos.
Não muito tempo depois, quando a maioria já havia desistido de ir ao templo de Inari para pedir uma solução, Tetsurou manteve-se a noite inteira com as mãos em forma de concha sob o coração de Hana, dizendo que iria livrá-la da energia maléfica acumulada na região. Yusuke cruzava os braços e apostava consigo mesmo quando ele ia citar Youkais outra vez. De fato, ao amanhecer, Hana apareceu milagrosamente curada e sem sequelas.
Yusuke encarou o sangue outra vez. Agora, era o pai de Hana que se encontrava debilitado, mas parecia que o herdeiro dos Seki não estava dando conta de exorcizar os demônios que acreditava serem reais, não é mesmo?
Ergueu-se para tomar o caminho de casa e estacou assim que se pôs de pé. Um farfalhar na floresta, mais alto que o som das cigarras. Pousou a mão no cabo da Verdadeira Lâmina da Serpente presa em sua cintura, preparado para sacá-la se precisasse, e foi atrás da origem do som a passos leves. Os arbustos que faziam divisória entre o templo e a mata fechada estavam trêmulos. Uma raposa? Talvez elas ainda rondassem o jardim. Ou poderia ser um ladrão.
Yusuke levantou o queixo, firmou os dedos no cabo e se embrenhou no mato. Afastava os galhos para que eles não agarrassem no tecido de seu kimono, até alcançar o outro lado, deparando-se com uma relva selvagem e… uma pessoa.
Ele arregalou os olhos e sentiu-se empalidecer.
Seki Tetsurou estava agachado e se virou, tão surpreso quanto ele.
— Você…! — Yusuke se desarmou por completo.
Preferia que tivesse sido um bandido.
Ele ainda possuía os cabelos que se assemelhavam às cascas das árvores, e os olhos, vários tons mais claros que os de Yusuke, brilhavam iluminados pela lamparina que segurava. Tetsurou se levantou, a expressão atônita. A chama que ele segurava iluminou o local, querendo alcançar o rosto do outro.
— Yuu-chan! É… é você mesmo? — murmurou, aproximando mais o fogo de Yusuke.
O samurai deu um passo para trás. Não porque tinha medo de ser queimado, embora Tetsurou parecesse desajeitado segurando a lanterna de papel, mas pelo que viu estampado na cara do antigo amigo.
O sorriso.
As linhas que o formavam eram dóceis, bondosas como se lembrava, exatamente da mesma forma de quando eram crianças.
— Não… — sibilou Tetsurou, respondendo a si mesmo. — Yusuke foi embora há muito tempo. Devo estar vendo coisas.
— Não sou miragem alguma. Sou eu, eu voltei.
Tetsurou parou, considerando. Então tentou tocá-lo para afirmar aquela verdade, mas Yusuke desviou como se a mão indo em sua direção fosse feita de fogo e ele estivesse prestes a ser queimado.
— Não ouse.
O sorriso de Tetsurou pareceu mais claro que a chama. Mais quente que a brasa. E mais triste que todas as gotas do oceano somadas.
Ele recolheu a mão.
— Então você finalmente voltou, Yuu-chan — disse Tetsurou, analisando o samurai de cima a baixo. — Bem, pelo que vejo.
— Não me chame assim, eu não sou mais criança! — exigiu Yusuke, estalando a língua em reclamação. — Muito menos somos amigos para você falar comigo.
Não podia admitir que ele ainda o tratasse daquela maneira, não só chamando pelo primeiro nome, mas usando apelidos e sufixos íntimos, como se ainda houvesse qualquer resquício de afeto.
— Mas sim, voltei e pretendo ficar. — E acrescentou: — Não que você tenha algo a ver com isso.
Tetsurou riu. Não de forma debochada; parecia-se mais com quando você perde um jogo e fica sem graça. Mesmo assim, só serviu para irritar mais Yusuke.
— Fico feliz que tenha voltado bem — o Seki disse por fim.
— Onii-san?
Foi só então que Yusuke reparou que atrás de Tetsurou havia uma garota pequena, de aproximadamente seis anos, o cabelo preso em um rabo de cavalo na lateral da cabeça.
— Quem é esse? — ela sussurrou sem querer chamar atenção, puxando a barra da calça estilo hakama de Tetsurou.
— É um antigo amigo, Mirai. Eu já te contei sobre ele. Não se lembra das aventuras do samurai Yuu-chan? — Tetsurou voltou a se agachar para ficar na altura dela. — Ele acabou de voltar de uma viagem longa e teve que enfrentar vários demônios. Seja boazinha com ele, sim?
— O samurai Yusuke é de verdade? — ela exclamou, olhando encantada para o samurai. — Você enfrentou Youkais, Yuu-san?! Como eles eram?
Talvez tivesse feito algo de errado em sua oferenda e Inari estivesse o castigando. Não bastava encontrar Tetsurou e, pior, saber que ele contava histórias sobre si e suas aventuras, a irmã menor, outra Seki, também o estava chamando pelo maldito apelido. Yuu. Pelo menos não copiou o chan usado pelo irmão, que ao pé da letra, significava algo como Yuzinho.
E ainda estavam falando daquela baboseira de demônios… Não só o curandeiro acreditava nas lendas, como também estava levando a irmã menor pelo mesmo caminho.
Nem se preocupou em ser desrespeitoso; bufou incrédulo na cara dos Seki.
— Youkais não existem. — Já que Tetsurou não falava a verdade para a menina, que fosse ele então a elucidar. — Existem pessoas. Eu lutei contra pessoas e as derrotei. Elas tinham espadas e eram iguais a mim, humanos.
Tetsurou até tentou tapar os ouvidos da criança, mas já era tarde demais.
— Existem sim! — Mirai ralhou. — Como você sabe se nunca lutou com um então, hein? Não é, nii-san?
— Ela tem razão, Yuu-chan.
— Pare de me chamar assim, Seki! — Yusuke bradou. Em seguida, retomou a compostura. — Andei por diversas florestas, matas, vilarejos e cidades. E nunca apareceu nem a sombra de um Youkai na minha frente. Se eles existissem de verdade, eu já teria visto.
Os irmãos se entreolharam sem dizer nada. Tetsurou sorriu e olhou para Yusuke.
— Talvez eles não quisessem aparecer para você.
Mirai balançou a cabeça.
— É isso mesmo!
Yusuke entortou a boca em uma careta. Por que ainda estava perdendo o seu tempo com Tetsurou e aquela menina? Deveria voltar para casa, Akane já devia estranhar a demora.
— Essa desculpa é ridícula. Se são demônios, um viajante solitário em uma floresta escura é um prato cheio para eles.
A irmã de Seki afinou os olhos, dando uma boa olhada em Yusuke. Então virou-se para o irmão.
— Nii-san, eu achava que o samurai Yuu-san fosse mais… legal. Ele é um tapado!
— Ei, eu não sou tapado. Eu estou sempre atento a tudo!
— Não a Youkais! Tapado!
— Você é muito mal-educada, sabia?
Ela levantou os ombros.
Tetsurou prestava atenção na conversa com vasta paciência, sem perder a expressão serena, embora desse suspiros condescendentes vez ou outra assistindo o samurai rivalizar com sua irmãzinha. Eles iriam continuar brigando feito duas crianças, não fosse o susto ao ouvirem um farfalhar de folhas, como se alguém tivesse se mexido ali.
— O que foi isso? — Yusuke disse, virando-se para Tetsurou. — Vocês estão esperando mais alguém?
Tetsurou negou com a cabeça, a expressão também surpresa. Mirai, contudo, estava mais encantada do que assustada. Ela inflou o peito para Yusuke.
— Viu só! Isso com certeza foi um you…
Ela chiou, uma tosse repentina e violenta sobressaindo cada vez mais alta, roubando o ar de seus pulmões. Aconteceu em segundos. O pigarro ficou anormalmente grosso, ela perdeu a sustentação do corpo, caindo e se contorcendo — as mãos, os braços, o tronco, o rosto. A pupila saltou de um lado para o outro e se escondeu sob as pálpebras, só se via o branco de seus olhos. Tetsurou deixou a lanterna no chão e foi acudir a irmã, enquanto Yusuke assistia abismado a convulsão. Andou de norte a sul, mas nunca tinha visto nada como aquilo. Poderia chamar até de…
Possessão.
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