O nome do seu clã foi talhado no portão de madeira.
Kou.
Aquele que deveria ser o único lugar para chamar de lar, onde poderia descansar após longos dias de viagem. Sua casa.
Abriu o portão com facilidade, estranhando como tudo ainda permanecia igual desde a última vez em que pisou na trilha de pedras redondas que levava até o engawa, o espaço pavimentado de madeira sob o beiral do telhado que dava acesso à entrada da casa. Havia no jardim um lago cercado de pedras quadradas, abastecido por um bambu que funcionava como fonte. Arranjos de flores dos mais variados decoravam o quintal de forma harmoniosa.
Pisou na pedra que servia de degrau e tirou suas sandálias de palha, ficando somente de meias. Abriu a face das paredes que eram também portas corrediças, chamadas shōji, e entrou.
— Estou de volta! — Quantas vezes durante aqueles três anos não quis dizer aquilo à mãe?
Ao invés de correr aos seus braços, a mãe ficou parada na divisória dos cômodos, sem conseguir dizer uma palavra. Ela se chamava Akane, que significava “vermelho-escuro”, a cor que também dava o nome à montanha que os cercava. Os olhos deles mergulharam uns nos outros, refletindo a hesitação que havia parado o tempo e espaço daquele momento.
Segundos sentindo o fim da saudade.
Então a mulher cruzou o espaço entre eles, seus passos largos sendo absorvidos pelo tatame. Akane abriu os braços e, como se o filho ainda fosse uma criança, tomou-o em seu colo. Yusuke retribuiu na mesma hora, sem deixar a hesitação se estender por nem mais um segundo. Controlou a força para abraçar a mãe, agradecendo silenciosamente aos Deuses por chegar a salvo para conseguir fazer isso.
— Meu filho… largue a espada — murmurou Akane, com a voz abafada e trêmula.
Ele pôs uma mão na sua katana, que havia recebido de KuanYang. Não quis obedecer e com motivos. Mas assim que ouviu soluços sufocados contra seu peito e se certificou de que não havia mais ninguém além dos dois ali, Yusuke cedeu, retirando ambas as espadas da cintura e as colocando no chão.
— Não precisa ficar assim, mãe. Eu estou bem. — Segurou-a pelos ombros e a afastou para poder olhá-la, secretamente buscando algum hematoma pelo seu rosto. — Olha para mim, mãe.
Ela olhou. Tinha o rosto redondo e amoroso com marcas de idade, ternura se desenhava nos olhos castanhos tão diferentes dos dele, que eram negros como os de um lobo faminto.
— Vê? Nenhum machucado ou rasgo na roupa. Eu ganhei contra todos os outros, honrei nossa família, como das outras vezes. Você se preocupa à toa.
— Mas é claro que eu vou me preocupar, eu sou sua mãe. — A ponta de severidade na voz se desfez em seguida. Akane enxugou as lágrimas e acarinhou o rosto de Yusuke com as costas dos dedos, admirando cada traço. Yusuke deixou que ela o tocasse enquanto a avaliava, caçando algo que indicasse mais do que uma enfermidade.
— Sou eu quem tenho que me preocupar com a senhora. Fiquei sabendo que há uma doença…
— Bobagem! Sou uma mulher saudável.
— A senhora precisa se cuidar, ouvi dizer que nem ele encontrou-
A expressão transtornada de Akane cortou Yusuke.
— Não mencione aquele bastardo dentro desta casa! — Sua postura era orgulhosa enquanto falava; Yusuke tinha a quem puxar. — Se ele achar ou não, não importa. Prefiro morrer a aceitar qualquer ajuda daquela família — disse as últimas palavras com nojo.
Yusuke não contestou. No lugar dela, teria a mesma reação indignada.
Um dia seu clã foi de nobres senhores, mas antes mesmo de Yusuke tornar-se seu único descendente, os Kou perderam tudo em apostas. Akane acreditava que os Seki se aproveitaram do vício do marido, fazendo-se de amigos até roubarem tudo o que tinham. Além de outras crueldades que aquele clã terrível fez, as duas famílias eram como polos opostos, e logo os dois amigos inseparáveis ficaram no meio do fogo cruzado. Foi natural.
Num momento você não pode se imaginar vivendo sem uma pessoa, no outro, ela te decepciona e te descarta como lixo. O que adiantava ser ótimo em curar feridas abertas na pele, mas ser péssimo em tratar as do coração? A de Yusuke, ao menos, estava bem aberta. Mesmo após mais de uma década, cada vez que aquele nome, era como cutucá-la até sangrar. Imaginava que sua mãe se sentisse da mesma forma sobre os que carregavam o nome Seki.
— Eu tenho uma coisa para você — Yusuke disse, indo se sentar numa das almofadas ao redor da mesa baixa. Com a mão livre, tirou da cintura um saco de pano pesado e jogou-o em cima da mesa. Moedas de ouro tintilaram contra a madeira. — Isso foi tudo o que eu ganhei. Guarde para pagar as dívidas e comprar comida para o inverno.
Akane ficou paralisada, os olhos fixos no ouro. O pano mal era o suficiente para suportar aquela quantia. Ela se desmanchou de joelhos, os olhos brilhando de surpresa ao tocar nas moedas e senti-las reais. Seu trabalho nos arrozais junto ao marido só lhe renderia aquela quantidade com pelo menos cinco anos de trabalho!
Observando a surpresa da mãe, Yusuke falou:
— Recebi do nosso daimyō. — Ergueu o queixo, um sorriso branco de vaidade querendo nascer. — Uma moeda por cada cabeça cortada.
— Mas Yusuke, é muito dinheiro! — Ela o encarou, apreensiva. — É seu, eu não… Céus! Você matou tantas pessoas assim? Eu não posso ficar com isso.
— Não só pode, como deve. Eu ganhei para a senhora. Por favor, aceite. — Yusuke falava enquanto se curvava, até encostar a testa no tatame. — Não aceitando, estará desonrando os meus esforços para ser um bom filho.
A expressão de Akane se transformou em compaixão. Alívio inundou Yusuke ao notar as mãos dela relaxarem. As portas atrás deles se abriram em um chiado abafado. Ambos voltaram a atenção para a figura que acabara de entrar. Yusuke ainda estava inclinado em sua reverência, as moedas jogadas sobre a mesa.
O samurai estreitou os olhos. O homem o encarou com um sorriso que poderia transparecer tudo, menos acolhimento.
— Você voltou, Yusuke. — Não havia alegria em seu tom. Até seus olhos pousarem na mesa. — E parece que matou feito um animal para ganhar tudo isso, não é?
Yusuke se levantou para encará-lo de frente.
— Sim, eu cumpri meu dever como samurai e voltei para cuidar da minha mãe.
— Cuidar da sua mãe? Depois de ficar três anos fora brincando com essas espadas? — Olhou para as lâminas no chão. — Percebo o quanto estava preocupado com ela.
Akane abaixou a cabeça, sem coragem de rebater. Todo seu orgulho, vivacidade e euforia foram embora. Yusuke trincou os dentes, agradecendo por ter deixado as espadas longe, caso contrário não demoraria a atravessá-las no pescoço do homem que deveria chamar de pai.
O senhor de cabelos grisalhos, rabo de cavalo curto e corpo forte poderia tê-lo criado, mas Yusuke estava longe de amá-lo como sua família. Na verdade, o detestava. Toda vez que o olhava, lembrava-se do motivo. O recente hematoma roxo que Akane tentou esconder a todo custo só mostrava como Ryuji era um homem abominável.
Yusuke ganhava a vida com mortes e violência, mas achava uma atrocidade subjugar quem se diz amar.
Uma vez, ele recebeu de Ryuji uma surra tão sentida que o fez mancar por três semanas. Seu pai costumava empurrá-lo e dar beliscões, mas o que antes era só para fazê-lo obedecer havia se transformado em agressões para castigá-lo — às vezes por coisas que nem eram culpa sua. Quando chegou a ponto de apanhar com socos e pontapés, fez com que fosse uma vez só.
Não tinha ainda maturidade para enfrentar o pai, mas dias depois de surrá-lo, Ryuji chegou em casa ferido e passou a evitá-lo. Simples assim. Tinha apanhado em uma das casas de jogos que frequentava, onde também gastava todo o dinheiro da família, e por um motivo ou outro, parou de bater no garoto, direcionando sua frustração à mãe.
Yusuke tentou proteger Akane daquelas brigas mais vezes do que pôde contar, mas o pai o prendia no quarto e voltava a agredir a esposa. Não conseguia apanhar no lugar da mãe e não era forte o suficiente para o enfrentar Ryuji. Frustrado, treinou por muito tempo na esperança de conseguir tomar as rédeas em casa. Havia crescido e se tornado um samurai, discípulo da grande KuanYang; era um guerreiro honrado, forte e habilidoso, temido em vários vilarejos.
Aquele homem nunca mais iria encostar em sua mãe.
— Posso ter ficado longe por mais tempo dessa vez, mas voltei para ficar.
Ryuji riu curto e debochado.
— Veremos quanto tempo isso vai durar dessa vez. E não responda para mim, garoto insolente!
Notando o clima bélico prestes a explodir entre os dois, Akane temeu pelo temperamento explosivo do filho, que apesar de ter retirado as espadas, ainda se garantiria bem numa luta com os punhos. Atualmente, Ryuji não era páreo para o samurai, estivesse ele com armas ou não. Reconhecia em Yusuke um olhar furioso capaz de desequilibrar qualquer um, enquanto chamava para avançar. Parecia loucura, mas era como mirar a própria montanha Akayama.
Conhecendo também a violência desmedida do marido, sabia ser questão de tempo para ele cair na tentação.
Se encarando como duas feras hesitando antes do ataque, ninguém percebeu quando Akane se levantou, foi até a cozinha e retornou com um pote de arroz e um incenso, irrompendo no campo de visão de Yusuke com uma trouxa. O samurai levou a cabeça para trás, atordoado com a súbita interrupção. Olhou para a mãe e depois para o que ela lhe oferecia sem entender.
— Filho, vá até o templo de Inari e ofereça isso em agradecimento à Deusa por ter voltado são e salvo. Faça essa oferenda e depois volte para casa para jantarmos. — Akane deu a trouxa com arroz e incenso para Yusuke, que aceitou, ainda aéreo. — Vou fazer sua comida preferida quando voltar. O que acha?
Yusuke julgava ser um esforço inútil tentar evitar o embate entre os dois por mais tempo. O pai já havia ameaçado expulsá-lo caso se tornasse samurai e fosse enfrentar as guerras pelo shogunato, ignorando até mesmo a honra que o cargo traria aos Kou por capricho ou medo. Mas medo? Yusuke também não entendia os sentimentos controversos do pai, o fato é que tais sentimentos foram se aliviando conforme os anos passavam e Yusuke voltava não só intacto, como em posse de uma fortuna. Mais dinheiro para se ocupar nos jogos de azar, menos tempo importunando Akane.
Porém, havia outra consequência: o garoto que nunca aceitou ser submisso além de tudo sabia lutar. E não iria abandonar a mãe de jeito nenhum.
Se alguém tivesse que sair, seria Ryuji. Vivo ou morto.
— Yusuke?
— Sim, mãe. Eu estou indo agora.
— Isso, vá embora como sempre faz — Ryuji provocou, a voz arrastada pelo álcool. — Foi bom isso, você ter saído. Percebi que ninguém precisa de você aqui. Nem aquele seu amigo que te trocou na primeira oportunidade. Ele está bem melhor desde que você foi embora.
Um raio azul disparou pela sala. Yusuke alavancou a espada para cima com o pé e a pegou no ar com uma precisão absurda. Sem perder a velocidade, sacou a lâmina, afiada e azul como uma safira, parando-a poucos centímetros antes de tocar o pescoço de Ryuji. A expressão do homem vacilou, amedrontado pelo brilho maligno do metal, mas o filho acompanhou sua dança, acuando-o contra a parede. As mãos seguravam a katana como se ela fosse uma extensão de corpo, mas não foi a habilidade que assustou tanto Ryuji. Foi a arma.
Azul ao invés de cinza, havia algo mágico em sua superfície, mesmo que ela fosse nitidamente feita de metal. Tão perto, o pai via quatro ideogramas entalhados perto da guarda: Verdadeira Lâmina da Serpente.
— Como… quem te deu isso? — Ryuji disparou, seu rosto indo do branco pasmo para o vermelho raivoso. Sem deixar o filho responder, gritou irado: — Como se atreve a apontar uma arma contra o seu próprio pai?!
— Você não é meu pai.
— Seu bastardo…
— Yusuke, abaixe isso!
Seu corpo reagiu primeiro, vacilando no aperto. Não soltou. Girou-a na mão, mostrando a outra face, onde uma cobra se enroscava ao longo dos dez palmos da espada. Mais um movimento. Uma impulsão e nunca mais teria problemas…
— Fez a sua demonstração? — Ryuji disse de dentes cerrados. — Está fazendo sua mãe chorar. Satisfeito?
Yusuke tamborilou o cabo, fez um movimento rápido e furioso como a maré em lua cheia. Ryuji tremeu, sentindo o golpe que atravessou a milímetros do seu rosto, rasgando o papel translúcido da porta e cortando as madeiras que sustentavam a porta até embaixo. Como se cortasse carne. Fácil e letal. O samurai mal tensionou os músculos; além de belíssima e singular, a lâmina azul era afiada como se pertencesse a um Deus.
— Essa é minha demonstração para você, covarde.
E assim que disse a última palavra, um filete de sangue se abriu na bochecha de Ryuji.
Soluçando, Akane enlaçou o braço do filho num toque leve, segurando com cautela e medo. Mas medo? Pensar na mãe tendo medo de dele fez Yusuke ceder, embainhando a espada num som abafado. Assim que ela sumiu de vista, a tensão desapareceu também, como se a Verdadeira Lâmina da Serpente tivesse despertado todos os demônios do recinto e agora permitisse que voltassem a dormir.
Respirou fundo, se recompondo à força. Não iria ficar nem mais um minuto na presença daquele senhor. Com a cólera sobressaindo-se à dor da ferida que o pai havia cutucado, afastou sutilmente a mãe e foi até onde estava seu dinheiro ganho na guerra. Juntou-o com pressa, colocando no saco, e soltou-o sobre a mesa.
— Guarde o dinheiro. Ele é seu, não é para gastar em saquê barato e em mesas de jogos. — Olhava para a mãe, mas fez questão de falar alto para que Ryuji não se atrevesse a roubá-la, como sempre fazia. Abaixou a cabeça em uma rápida reverência. — Desculpa, mãe.
Com as duas espadas na cintura e uma mão ocupada equilibrando o arroz e incenso, ele passou para o quintal sem dar atenção ao pai. Percorreu o caminho até o templo de Inari no escuro, seus pés indo praticamente sozinhos. Subiu degrau por degrau de olhos fechados. O santuário havia sido esquecido por muitos, mas não por Yusuke…
Muito menos pelo seu ex-melhor amigo de infância, Seki Tetsurou.
Comments (1)
See all