Do alto da planície, Yusuke respirou fundo o ar do vilarejo perdido entre as montanhas na região de Ise. Dali era possível distinguir os campos de arroz, onde os brotos das novas sementes esperavam a próxima estação para irem às mesas. De longe, em contra-luz, os quadrados de água refletiam a coloração alaranjada do céu, formando uma pintura bonita de casa.
Seus olhos ficaram miúdos, ardidos pelos raios de sol. O cheiro tinha gosto de verão e terra molhada; o vento vinha quente, soprando saudoso como uma canção de biwa, esvoaçando seus cabelos negros amarrados no alto da cabeça. Ao longe, passando por muitas casas além da ponte vermelha, conseguia vê-la.
Akayama.
A montanha engolia o sol, nuvens vagas cobriam seu pico. Pela sua extensão havia florestas consideradas mágicas, protegidas por espíritos, intocáveis. Há um ano, enquanto partia para mais uma guerra, Yusuke parou no mesmo ponto e se perdeu observando o símbolo de sua perseverança.
Isso porque se um guerreiro tivesse a Akayama como exemplo, como ele teve, teria de ser veloz como o vento, silencioso como uma floresta, feroz como o fogo e tentador como uma montanha. O que significava que sua lâmina tinha dois lados: o atraente, que fazia seus inimigos desejarem desafiá-lo por sua fama; e o perigoso, afiado o suficiente para matar qualquer um que tentasse.
Não à toa ele tinha a fama de ser um prodígio na arte da guerra. O Sol Misericordioso — ou KuanYang, como era o título de sua mestra —, ensinou-lhe o domínio da espada apenas cinco anos depois de ele chegar em Ise. À base de disciplina, estudos e exercícios, ele se tornou o melhor do vilarejo.
Talvez tenha sido o melhor do Japão.
Seguindo o caminho da descida, tomou cuidado com a terra molhada, passando pela pequena ponte de madeira. O riacho havia transbordado por conta da chuva que precedeu sua chegada. A área humilde da vila era feita de construções de madeira com telhados triangulares moldados por pedras e palhas. Antes dos nove anos, corria entre aquelas casas, brincando com pessoas que não poderia mais chamar de amigos. Um pouco mais longe, havia as residências dos donos de terras. Verdadeiros palácios, altos e imponentes, cercados e cheios de criados.
Se ele tivesse sorrido, os lábios iriam se desmanchar bem ali.
Yusuke adentrou o vilarejo, passando os olhos rapidamente por uma figura na entrada. Não deu importância, mas a pessoa logo entrou em seu caminho, forçando-o a olhá-la.
— Com licença, por acaso você seria o filho dos Kou?
Era uma garota da sua idade, com os olhos vivos e curiosos. Usava um brinco de pedra anil que se misturava aos fios negros. Ele deu uma rápida olhada nas vestes sacerdotais em vermelho e branco que ela vestia.
— Sim, sou eu, mas eu a conheço? Ou melhor, como sabe…?
Ela sorriu e virou o rosto, suas bochechas adquirindo um tom rosado, talvez um reflexo do pôr do sol…
— Não me reconhece mesmo, Yusuke?
Kou Yusuke a encarou mais uma vez. Buscou rostos de amigas de infância similares, se forçando a achar os traços delicados em algum lugar. Sua memória não era admirável, mas enfim reconheceu aquelas sardinhas e os olhos negros calorosos.
— Hana-san?
Como pôde demorar para notar? Foi ele quem resgatou a pedra azul de seu brinco quando ela o perdeu num riacho. Mesmo acreditando que a correnteza já tivesse levado o pertence para longe, os soluços chorosos da garotinha ressaltaram seu senso heroico. Saiu da água engasgado e quase sem ar, mas com o brinco no punho. A lembrança fez Yusuke se perguntar o porquê daquele objeto tê-la feito se desesperar tanto; até então, ele não sabia.
Ela deu uma risada contida.
— Se passaram três anos, tudo bem se você tivesse se esquecido de mim…
Fazia mais de três anos, a bem da verdade. Apesar de não serem próximos, Hana esteve presente na sua infância. Era uma acumuladora compulsiva e desastrada, guardava o que achava pertinente e logo depois perdia as bugigangas. Era Yusuke quem ela chamava para procurarem juntos suas pedras preciosas, galhos e outras tralhas sem valor.
— Não, eu… só estou um pouco cansado de viagem e a pouca luz não colaborou com a minha memória — disse ele, a encarando por segundos demorados. — Seu cabelo cresceu desde a última vez que te vi.
Ainda sorrindo, Hana passou os dedos pelas mechas lisas e escuras como breu. Yusuke já não tinha tanta certeza se as bochechas coradas eram culpa do sol, pois as estrelas começavam a ocupar seus lugares no céu.
— É mesmo… cresceu bastante. — Colocando parte do cabelo atrás da orelha, ela de repente abriu bem os olhos, se lembrando de algo importante. — Você deve estar morto de sede! Disse estar cansado, não é? Kou-san, pode esperar um pouco? Posso te trazer um pouco de água. Se quiser. Sim, se você quiser, eu posso…
— Não precisa se dar ao trabalho.
— Não seria um trabalho. Só fique aí um pouco, eu-eu já vou…
— Não precisa mesmo, eu preciso ir. Minha mãe está esperando.
Ela curvou a cabeça em um gesto de gentileza.
— Bem, me deixe então fazer algo por atrasar seu caminho de volta para casa, por favor.
Estava mesmo com sede, e preferiria saciá-la quando chegasse em casa. Porém, era difícil recusar Hana e seus olhos brilhando em súplica.
— Se não for incomodar… — ele balbuciou por fim.
O rosto dela se iluminou como um segundo sol. Yusuke não imaginava o que faria uma pessoa ficar tão feliz a ponto de saltitar até o poço para buscar água. Hana jogou o balde e quando alcançou a água, tentou puxá-lo sem sucesso. Notando a expressão de esforço nas tentativas de desemperrar o balde, ele foi até lá e tirou a corda das suas mãos.
— Não se preocupe, eu faço para você. — E puxou a corda com uma facilidade enorme, sem nem tensionar os músculos. O balde começou a aparecer na escuridão do poço. — Não precisa calejar as mãos por minha causa.
Hana ficou o admirando com olhos arregalados. Quando finalmente o balde cheio d'água foi colocado sobre a mureta, Yusuke voltou a olhá-la. Seu rosto estava muito vermelho.
Disso ele não se lembrava, mas a pele pálida dela costumava adquirir aquela cor quando ele se aproximava demais.
— Você está bem? Seu rosto está vermelho. — Franziu as sobrancelhas, fechando a cara para analisá-la melhor. — Não está doente? Talvez seja melhor você também tomar um pouco de água.
A face de Hana incendiou, as mãos se agitaram enquanto ela atropelava as palavras.
— N-n-não…! E-eu… Estou bem, eu só… Eu estou preocupada com meu pai…
— Preocupada com o seu pai?
Hana arqueou as costas e o olhou, levantando o dedo indicador.
— É isso mesmo! — O tom era confiante e, se Yusuke fosse sagaz como uma raposa, perceberia alívio também. — Eu estou vermelha porque estou preocupada com o meu pai!
— O que seu pai tem?
A resposta demorou a escapar dos lábios mordiscados. Ela fitou o chão e o brilho rosado foi embora, substituído por linhas expressivas e lábios crispados.
— Perdão — disse Yusuke, abaixando o corpo para fazer uma mesura e ir embora. — Não é da minha conta.
— Não, você não deve saber, já que está fora do vilarejo há anos. — Ela sorriu um sorriso triste. — Começou há seis meses. Muitas pessoas por aqui ficaram doentes sem explicação. Todos começaram a brigar. Vizinhos, amigos de longa data, todos agora se odeiam… Ninguém está conseguindo identificar e nem curar essa doença.
— Ninguém?
Percebendo sobre quem Yusuke quis se referir, Hana baixou a cabeça envergonhada. A fofoca sobre como os dois se detestavam chegara até mesmo no daimyō. Se verdade ou não, a cara fechada do Yusuke reafirmava ao menos sua parte da história. A tensão nos músculos da testa e dos olhos fez um vinco feio no rosto.
— Ele… está tentando encontrar a cura. Por enquanto tudo o que temos são chás para aliviar os sintomas.
Enquanto Yusuke era o melhor em matar, ele era o melhor em salvar. Eram dualidades, misturas heterogêneas como água e óleo. Nem sempre foi assim, mas era a ordem natural das coisas.
Se nem mesmo ele havia descoberto o remédio para aquela doença…
Sem se deixar afetar pela expressão transformada de Yusuke, Hana abaixou a voz como se contasse um segredo, olhando para os lados:
— Tetsurou suspeita que seja obra de um Youkai.
Yusuke quase foi desrespeitoso, bufando uma reclamação na cara dela.
E a ferida sangrou.
— E vocês acreditam naquele mentiroso? — disse com asco na voz.
— Bem… ele… ele é o melhor curandeiro da região, então…
O bufar de Yusuke finalmente saiu, negando com a cabeça enquanto controlava os impulsos. Hana já tinha se recolhido pela mudança repentina de humor do samurai, retraindo-se porque sabia que não deveria ter tocado no assunto.
E de novo havia aquela baboseira de Youkais. Já deveria estar acostumado, pois, não importava por onde passasse, de vilas pequenas às grandes cidades, as pessoas adoravam atribuir a culpa dos seus infortúnios ao sobrenatural. Se chovesse muito, se alguém ficasse doente, se a comida queimasse, se a guerra piorasse... tudo era obra de espíritos, nunca culpa do acaso, da vida, dos próprios demônios internos. Os seres humanos sempre tinham que culpar seres mitológicos para se eximir das responsabilidades.
Era irritante, mas não podia julgar Hana por preferir acreditar que seu pai estava sob influência de um Youkai ao invés de aceitar que o tempo estava simplesmente fazendo seu trabalho.
Controlando-se, Yusuke massageou os ombros e voltou ao tom respeitoso:
— Sinto muito pelo seu pai, espero que ele melhore logo. Obrigado pela água e por me contar o que está acontecendo, mas eu preciso ir ver meus pais.
Hana concordou, as bochechas coradas.
— Me desculpe, Kou-san. Você mal voltou e eu estou aqui, enchendo seus ouvidos com besteiras!
— Não se preocupe com isso. — Suas feições se tornaram menos endurecidas e um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. — Até mais. Volte logo para casa você também, está escurecendo rápido hoje.
Yusuke fez uma rápida reverência e tomou seu rumo, não sem antes verificar se Hana havia feito o mesmo.
Comments (0)
See all