LORENA CAPÍTULO TRÊS Quando Lorena procura abrigo
It's like the universe has left me
Without a place to go
Without a hint of light
To watch the movement glow
— Blink 182 “Ghosts On The Dance Floor”
Lorena foi arrastada pelo garoto por toda a construção. Reconheceu onde estavam ao chegarem na rua. O IML ficava em uma casa pequena numa área mais afastada do centro de Balneário Camboriú. A universidade ficava por perto. Universidade essa em que nunca entraria.
Era noite e não havia ninguém em volta. Aquela região era um abandono nas madrugadas e os carros só passavam por ali para chegar à rodovia. Ou a algum dos inúmeros motéis baratos. Lorena parou na calçada e ajeitou o lençol para ter certeza que ele cobria todo corpo. Se fosse mais praieira, talvez tivesse aprendido a amarrar uma canga.
— Precisamos achar algo pra você vestir. — disse ele, olhando de esguelha para a porta do IML. — E aí vamos até a Flávia.
— Quem é Flávia?
— É uma ceifadora.
— Uma ceifadora? Uau, ela parece ser muito mais qualificada para me receber no pós-morte do que você.
Lucas suspirou.
— Ela vai te explicar tudo. Algo a ver com morte acidental, não planejada, sei lá.
— Morte não planejada?
— Olha, eu não sei tá bom, só tô obedecendo o que a Flávia me disse pra fazer. Se quer respostas, me ajude a pensar em como arranjar roupa pra você não andar de pano mortuário pela cidade. Além disso, alguém pode reconhecer você.
Lorena ainda tinha uma coisa ou duas para falar, mas ficou calada. Como o mundo dos mortos podia ser tão desorganizado? Não tinha o direito nem de morrer em paz naquela cidade? Precisaria ligar para o SAC e fazer uma reclamação.
Esfregou o rosto e mordeu o interior da bochecha, pensando.
— Eu sei onde podemos ir agora — disse ela. — É o apê da minha tia, ela tá viajando a trabalho. Se ela não vier pro meu funeral, posso me esconder ali por um tempo… mas se ela não vier eu vou ficar muito puta.
Lucas simplesmente virou o rosto para a rua sem dizer nada. Teve que admitir que ele era bonito. Afinal, estava morta, não velha. Ele tentou chutar uma pedra no chão e o pé simplesmente atravessou a rocha. Colocou as mãos nos bolsos, olhando para o chão.
— Mostre o caminho — ele falou.
Lorena fez que sim e começou a andar. Não estavam muito longe, uns vinte minutos de caminhada. Pegaria um caminho mais escuro e abandonado para evitar ser vista, passando pelas diversas ruazinhas entre os quarteirões.
A cidade estava calma naquela noite. Nenhuma festa ao redor, nenhum grupo de amigos, nenhum carro com música alta. Era outono, uma época do ano agradável, apesar do frio que começava a fazer. Percebeu que não sentia frio algum e os olhos voltaram a se encher de lágrimas. Lançou um olhar rápido para Lucas, com vergonha de chorar na frente dele. O fantasma, contudo, mantinha os olhos em frente.
Desviou de algumas poças e andou pelo asfalto durante parte do trajeto, fugindo da lama na calçada quebrada em frente a uma obra.
Foi só depois de dez minutos de caminhada que se lembrou de que não tinha as chaves e parou no lugar. Lucas, que andava atrás dela, atravessou-a. A sensação foi idêntica a passar por baixo de uma queda d’água. Lucas se virou para fitá-la.
— O que foi? — perguntou ele.
— Não tenho as chaves.
— Você não precisa de chaves. Tem alarme na casa?
— É um apartamento. Tem sim, mas eu sei o código.
— Não tem problema. Eu consigo abrir a porta. Aí você corre e digita o código.
Lorena não se moveu. Acabara de levar o dedo até a ponte do nariz para ajustar os óculos, que por acaso não estavam ali. Deu de ombros, resmungou uma resposta e voltou a andar. Mesmo com seis graus de astigmatismo, estava enxergando perfeitamente. Pensou em milhares de perguntas que poderia fazer e ficou calada. Ele não parecia disposto a conversar. Queria saber o motivo de ter virado uma zumbi e não uma fantasma. Procurariam pelo corpo dela? Afinal, ela tinha sumido do necrotério. Certamente não iriam acreditar no guarda quando ele dissesse que a viu andando e sobrevivendo a um tiro. Levou a mão a testa e tateou em busca do furo de bala. Não encontrou nada.
Lucas, reparando nela, comentou:
— Você vai regenerar sempre que se machucar. Estilo Jason.
Lorena abriu a boca para fazer um comentário, mas ele a interrompeu continuando a linha de raciocínio:
— Muito mais legal que ser só um fantasma, apesar de que ser um fantasma é legal também.
— Eu meio que acabei de morrer, então ainda tá cedo pra achar mega bacana eu ser uma merda duma zumbi.
— Foi mal, me empolguei. Nem reparei.
Achou que ele estava sendo sarcástico, mas a expressão de inocência no rosto dele indicava o contrário. Andaram em silêncio até o prédio. Lorena agradeceu por não haver portaria ali. Lucas abriu a porta do hall de entrada com um pouco de dificuldade. Subiram pelo elevador e entraram no apartamento da tia.
Depois de digitar o código do alarme, Lorena se deixou cair no sofá da sala. O apartamento era pequeno, mas aconchegante e colorido. Uma das paredes era roxa e as almofadas do sofá eram de patchwork, cada uma de uma cor. Havia um grande aparelho de som ao lado de um vaso de bambu da sorte de mentira, já que a tia não sabia cuidar de plantas. A parede oposta estava repleta de quadros e o velho pôster amassado do The Strokes estava quase caindo.
A tia adorava deixar seu lar o mais colorido possível e Lorena a ajudava a pintar e encontrar objetos de decoração novos. Os batentes das portas eram cada um de uma cor. Fitou a vela em formato de tigela de cereal colorido na mesa de centro. Havia dado de presente para a tia no último natal.
Lorena coçou o nariz, engolindo o choro. Era tudo tão surreal. Como poderia estar ali naquele lugar que chamava de lar, mas morta? Como aquela loucura poderia ser verdade? Queria dormir. Dormir por horas e mais horas. Talvez, quando acordasse, estaria em casa, na sua cama. Se levantaria, tomaria um banho e se arrumaria para um dia chato no trabalho.
Lucas se sentou no tapete em silêncio, fitando a estante de livros que ficava acima da televisão, correndo os olhos por tudo. Talvez, pensou Lorena, ele estivesse pensando no tempo que tinha para ler todos os livros que quisesse. Foi com esse pensamento na cabeça que adormeceu.
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