Era difícil acreditar que havia sobrevivido aquela noite, Ivy saiu do restaurante e correu o mais rápido que pôde arrancando os saltos e pisando no chão com os pés descalços, era noite e a calçada estava morna após absorver calor durante todo o dia, o toque áspero dava uma sensação de relaxamento junto à adrenalina criada pela fuga e pela corrida, seu corpo não tremia mais, o medo foi diminuindo e tudo que seu corpo sentia era a respiração pesada, o suor escorrendo, os batimentos acelerados e as diferentes texturas do chão durante a sua fuga.
Com medo de que Dante a seguisse, ela entrou em ruas estreitas que seria impossível entrar de carro e seguiu correndo sem olhar para trás, pois tinha medo que se visse a figura do Rei do Inferno a perseguindo perderia a breve coragem de fugir, ela sabia que não podia voltar para a boate e que não poderia mais ser Ivy teria que dar um jeito de viver como Ian sem que fosse descoberto sobre seu alter-ego.
Chegar em casa foi um milagre, talvez impulsionada por um instinto de sobrevivência Ivy conseguiu correr por uma boa distância e caminhar rapidamente o resto do percurso, com um sentimento de segurança ela trancou a porta, arrastou o sofá para bloquear a entrada e caiu de joelhos em frente a ele. Sua respiração e batimentos cardíacos continuavam descompassados, seu rosto estava molhado com suor e lágrimas, mas estava tudo bem agora. Ivy deitou no chão, abraçou os joelhos e gradualmente seu corpo começou a se tranquilizar até que ela adormecesse.
A manhã seguinte chegou num piscar de olhos, Ian estava com o corpo dolorido não por ter dormido em uma posição estranha no chão, ele costumava desmaiar em qualquer lugar e nunca teve problema com isso, porém o esforço físico feito na noite anterior durante sua fuga havia sido demais para seu corpo sedentário, mas ele não podia se dar ao luxo de reclamar, afinal estava vivo e precisa trabalhar.
Chegar ao escritório pareceu mais difícil que o normal, ficar em pé no ônibus com as pernas e braços doloridos parecia uma amostra grátis do inferno, mas ele enfrentou tudo com um certo alívio no coração, afinal ninguém nunca havia fugido de Dante e sobrevivido para contar a história e ele com certeza nunca contaria a ninguém sobre o seu feito, levaria aquela vitória para túmulo.
Contudo, seu alívio não durou muito, seu celular foi bombardeado de mensagens durante toda a manhã, mas como não era permitido usar celular durante o trabalho, Ian só pôde verificar no horário de almoço.
(Mariano) Por que não apareceu ontem? Você está bem?
(Mariano) Dante quer o seu número, digo o de Ivy o que eu faço?
(Mariano) Responde filho da puta!
(Mariano) Eu não tive escolha, tive que dar o seu número a ele.
(Desconhecido) Podemos nos encontrar novamente?
(Desconhecido) Sou eu, Dante.
(Desconhecido) Te vejo à noite.
(Mariano) Você vem cantar hoje, não é?
(Mariano) Se você não vier eu sou um homem morto!
Com um suspiro, Ian encarou todas aquelas mensagens loucas em seu celular, desejando que sua curiosidade tivesse superado o seu senso de dever e tivesse levado o celular escondido no banheiro para olhar as mensagens, mas agora Inês é morta e não havia o que ser feito.
Seus dedos bateram várias vezes no teclado, escrevendo e apagando uma mensagem de resposta para Dante, afinal o que ele poderia dizer para o Rei do Inferno agora? O homem era praticamente dono da cidade e por algum motivo ele estava interessado nele, ou melhor, em seu alter-ego, Ivy.
Antes que pudesse colocar os pensamentos em ordem, o aparelho em sua mão brilhou, como estava no silencioso como de costume, apenas um número desconhecido apareceu no cursor.
"Pela primeira vez na vida espero que seja telemarketing"
— Alô — disse Ian em seu tom que usava como Ivy.
— Não achei que fosse me atender — disse a voz grossa do outro lado.
Ian temia por esse momento, o que havia passado por sua cabeça achando que realmente poderia fugir daquele homem? Se Dante queria Ivy, ele teria Ivy e era assim que o mundo girava, o que restava para um reles pião como ele era seguir as regras do jogo. Mas mesmo assim ele não foi capaz de responder.
— Não precisa dizer nada - disse Dante limpando a garganta depois de um tempo de silêncio — Foi tudo um mal-entendido, mas não liguei para falar sobre isso, o motivo da ligação é que eu quero pedir que não deixe de cantar. Não precisa se preocupar comigo, continuarei sendo apenas um cliente regular da boate, caso mude de ideia ao meu respeito, sabe onde me encontrar. Até mais tarde.
A ligação ficou muda e Ian estava sem entender o que havia acontecido, ele havia recebido algo mais próximo que podia se chamar de um pedido de desculpas, Dante não parecia chateado, nem irritado, o tom de voz na ligação não era o mesmo de antes, mais aveludado, diferente de quando ele falava com os outros.
Era estranho, como um homem que possuía o mundo todo em suas mãos poderia levar tão bem uma rejeição como aquela? Ian já estava disposto a desistir de seu emprego na boate, mas agora era seguro voltar? Ele podia voltar a ser Ivy? Que tipo de jogo Dante estava jogando?
Ivy era a chave! Ela tinha algum poder sobre o homem mais poderoso da cidade e isso era uma grande oportunidade, talvez a única em toda a sua vida! Se Ian jogasse as peças certas, talvez o seu grande sonho de ser uma pessoa rica e poderosa estivesse ao seu alcance afinal.
Enquanto mordia a ponta do dedo indicador, Ian pensava em seus próximos movimentos, ele sempre fora uma pessoa afiada de pensamentos rápidos e foi assim que sobreviveu todos esses anos e agora era hora de colocar a mente para pensar e montar a estratégia certa para vencer esse jogo, pois ele não tinha outra opção se ele deixasse de jogar não perderia só uma grande oportunidade, perderia também a vida, isso foi deixado bem claro quando os capangas do Inferno invadiram seu apartamento na calada da noite, então suas únicas escolhas eram vencer ou morrer. E com certeza ele não queria morrer.
No xadrez, um peão dobrado é um termo que se refere a dois peões localizados na mesma coluna. O termo foi discutido pela primeira vez por Philidor no livro L'analyse des échecs e constitui uma fraqueza na estrutura de peões, uma vez que estes peões não podem ser defendidos por outros peões.
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