Eu sempre fui
lembrado por ser muito diferente de todos os outros com quem convivia, desde o
jardim de infância até a idade avançada. Isso talvez tenha sido por causa de
meu autoconhecimento em demasia desde que era novo, uma vez que sempre me vi
como alguém que ama mais a seu pai do que a si mesmo. Sei que poucas pessoas no
mundo admitiriam isso, mas eu não tenho vergonha nenhuma. O amo tanto quanto um
bom pai amaria um filho, senão mais. E quem é este homem merecedor de todo esse
amor? Ah, sim. Meu pai é um homem alto, bem de corpo e cabeça. Inteligente o
suficiente para não ser enganado por ninguém e um pouco burrinho por me
subestimar na maioria das vezes. Você sabe como pais são: acham que por ter
vivido mais tempo que a gente e por terem visto a gente crescer acabam chegando
à conclusão de que não podemos surpreendê-los. E na maioria das vezes isso é
verdade, de fato.
Meu pai sempre trabalhou em um prédio enorme desde antes de meu nascimento e assim foi até sua aposentadoria. Eu não sei direito o que ele fazia, mas até onde elas conseguiram me explicar eu sei que ele trabalhava com bancos e a bolsa de valores. Seus horários eram imprevisíveis a ponto de haver semanas em que ele não voltava para casa, exceto para datas festivas. Ele nunca admitiu aos outros colegas que tinha um filho, afinal de contas era uma politica da empresa na qual ele trabalhava de demitir quem os tivesse. Assim não precisariam prestar auxílio e ter de dispor ao funcionário uma carga horária de acordo com as leis trabalhistas. Lá no prédio meu pai era chamado de “Seu barba” pela pelugem abastada que cobria seu rosto e o pescoço. É claro que lá haviam outros que também tivessem barbas e bigodes, no entanto meu pai se destacava pela coloração incomum da barba dele.
E a minha mãe? Ah, sim, ela é uma história completamente diferente.
Ela era tão frágil quanto uma taça de vinho. Paranoica com tudo, desde o jornal da manhã até os olhares dos vizinhos. E para completar sempre tinha de ir ao psiquiatra, ou outro médico, por causa dos seus ataques de ansiedade e dores fantasmas nas juntas perfeitamente saudáveis. Eu não a amava tanto quanto ao meu pai e não sei exatamente o motivo disso. Sei que com meu pai eu sempre tive boas lembranças, como aquela vez em que me sentei no cesto ao lado da pia para vê-lo ajeitar a barba. Eu conseguia olhar para suas pernas nuas e pensar que ele parecia um gigante colossal, inabalável e ameaçador. Ele me pegou em seus braços e me beijou na bochecha. Disse que me amava e eu retribuí ainda sem saber o que era amor de verdade. Contudo, nunca tive uma memória dessas com minha mãe. Nem algo remotamente semelhante. Não saberia nem dizer se ela sequer tenha me amado algum dia. Como suas dores ela sempre me pareceu um fantasma: uma pessoa perdida e vazia procurando por significado em um mundo que dia após dia avançava independente dela.
Apesar de tudo isso ela me ensinou a ler e a escrever. Ela me levava à escola e me buscava na saída. Nossas caminhadas sempre foram preenchidas pelo silêncio mútuo ou os barulhos de carros, motos e pessoas pelos quais passávamos. Em casa ela me deixava assistir desenhos pela tarde e pela noite me punha a fazer os deveres. Antes de dormir sempre lia uma história em seu tom monótono e se o livro acabasse antes d’eu dormir ela simplesmente deixava de lado e ia fazer outra coisa. No entanto, meu pai também fazia algumas dessas coisas quando podia e quando lia as histórias de ninar ele imitava os tons de voz das personagens e fazia suspense. Ele sempre me fazia rir com a história da lebre e da tartaruga. Se lesse para mim hoje, sentado ao lado de minha cama, sei que ainda me faria gargalhar.
Um episódio curioso que ainda marca minha memória foi a madrugada em que meu pai chegou tentando não fazer barulho, como de costume. Minha mãe se levantou e cruzou a casa em segundos para lhe apontar o dedo e gritar com ele. Ele também retribuiu os insultos aumentando o tom de voz. Os gritos de ambos cessaram quando a porta da entrada foi aberta e fechada com força. Eu fui conferir e encontrei minha mãe no chão em prantos. Eu lhe dei um abraço forte e não pareceu ajudar. Ela se levantou um pouco depois e foi à cozinha. Eu a segui até lá e ela me ensinou a fazer suco natural. Tomamos em silêncio e ela pediu para eu ir deitar junto dela.
Na manhã seguinte eu acordei atrasado para ir à escola. Fui e voltei sozinho para não deixá-la brava. Quando voltei fiz questão de conferir se ela ainda estava deitada. Tanto estava que não parecia querer levantar. Esquentei algumas coisas prontas para comer e almocei. Assisti desenhos e fiz o dever de casa mais cedo. Meu pai voltou à noite e eu o abracei quando chegou. Naquele dia eu não entendi bem o que aconteceu. Vieram outras pessoas que colocaram minha mãe em um saco plástico e a levaram para longe. Poucos dias depois a enterraram. Meu pai chorou todos os dias antes de dormir. Eu tentei abraçá-lo para fazê-lo parar, mas também não pareceu ajudar. Aprendi que abraços só fazem as pessoas chorarem ainda mais.
A vizinha que minha mãe odiava fez amizade com meu pai um tempo depois. De vez em quando ela trazia algumas coisas prontas, como lasanhas, macarrões, tortas e bolos. A gente sempre comia tudo bem direitinho apesar do gosto não ser muito bom. Meu pai dizia que fazia bem a gente comer para a gente não passar fome e não deixar ela triste. Pouco tempo depois ela se ofereceu para cuidar de mim e meu pai não recusou. Não sei o que ela fazia para ganhar dinheiro, mas ela sempre pareceu ter dinheiro de sobra para comprar doces e salgadinhos para eu comer enquanto assistia desenhos animados. Ela também me levava à escola e me buscava na volta. Diferente da minha mãe ela sempre me punha a fazer os deveres e só depois me deixava assistir televisão.
Ela fazia algumas tarefas da casa de graça, mesmo que meu pai se oferecesse para pagá-la antes que ela voltasse para sua casa. A vizinha nunca aceitou qualquer valor dele. Sempre dizia que o prazer de poder ajudar já era suficiente.Ela sempre foi muito diferente da minha mãe no jeito. Era gorda, tinha cabelo curto naquele estilo tigela e usava óculos. Ela sorria e dava risada de coisas engraçadas junto comigo, algo que não consigo me lembrar de ter visto minha mãe fazer. Me lembro bem dela ler vários livros no seu tempo vago, inclusive de esquecer um deles no sofá. Eu peguei um deles bem escondido e fui para meu quarto. Li tudo desde a primeira folha até o final mais de uma vez, mas não entendi muita coisa. Sabia que tinha piratas, marinheiros e mocinhas, mas tinha uma palavra que nunca ouvi e sempre deixava tudo muito confuso quando era mencionada.
Quando perguntei ao meu pai o que era aquilo ele me respondeu todo encabulado. Ele me falou que sexo era quando dois adultos ajudavam um ao outro e ficavam muito felizes depois. Eu perguntei se ele fazia sexo com a vizinha e ele disse que não sem me olhar nos olhos. Não passou muito tempo até a vizinha vender a casa dela e vir morar com a gente.
Ela e meu pai sempre foram muito apaixonados e não faziam muita questão de esconder de mim. O romance durou alguns anos. Depois do casamento ela me ensinou a andar de bicicleta, tricotar, cozinhar arroz e feijão e trocar lâmpadas. É claro que meu pai subiu de cargo e passou a trabalhar mais. Havia meses que ele viajava para fora do país e nesses meses a vizinha sempre chorava antes de dormir. Ela sentia a falta dele e eu sabia que a falta de sexo deixava ela muito infeliz.
Eu não devia ter mais de dez anos e já sabia disso.
Eu também nunca tentei abraçá-la. Nem mesmo quando meu pai voltou outra vez de madrugada e ela cruzou a casa em segundos para gritar com ele. Os dois discutiram e ele saiu pouco depois. Eu a encontrei de joelhos no chão e ofereci o suco que tinha aprendido a fazer naquela noite com minha mãe. Ela tomou comigo e falou sobre muitas coisas. É claro que ela pedia para eu não contar para meu pai que ela tinha me falado aquilo tudo. Eu não lembro direito o que ela me contou, mas sabia que não era coisa de criança. Eu pedi para dormir com ela e ela aceitou de bom grado. Sei que ela tremeu até eu dormir e quando voltei a acordar na manhã seguinte ela não tremia mais. Eu cutuquei sua pele pálida e ela estava tão gelada quanto carne crua recém-saída da geladeira.
Era final de semana e eu não tinha que ir a escola. Queria tomar café da manhã junto dela e tentei acordá-la várias vezes pegando em seus braços e tentando arrastá-la para fora da cama. Até espetei agulhas nos dedos do pé e da mão dela, uma brincadeira antiga que minha mãe havia me recriminado com palmadas em meu rosto. Eu liguei para o escritório do meu pai e a secretária atendeu. Ela fez tudo o possível para encontra-lo e avisa-lo do ocorrido. Ele veio voando para casa e tratou de tudo em prantos. A vizinha também foi colocada em um saco plástico e levada para longe por aqueles mesmos homens que levaram a minha mãe. Alguns policiais perguntaram se ela tomava remédios e meu pai falou que ela tomava os mesmos remédios que minha mãe. Eu já sabia disso e torcia que apesar de tudo ela pudesse se sentir melhor onde quer que ela tenha ido. Eu não devia ter mais de doze anos quando isso aconteceu.
Meu pai ficou sozinho por alguns anos. Eu conseguia me virar e a casa sempre estava em ordem quando ele voltava. Às vezes íamos ao cinema, e outras ficávamos em casa tranquilos. Ele não demorou a engatar um romance com a secretária que tinha avisado a ele sobre a vizinha naquele dia. Eu sei que todas tomavam os mesmos remédios que minha mãe e esse havia sido o único elo que os investigadores conseguiram traçar.
As outras mulheres do meu pai também me ensinaram várias coisas, como empinar pipas, passar na prova para entrar na faculdade, dirigir carros e motos. Elas ficavam bem por alguns anos, mas sempre depois do casamento a rotina do meu pai as deixava infelizes e chorando todas as noites antes de dormir. Elas discutiam com ele uma noite e eu preparava o suco para conversarem e falarem sobre tudo que eu não deveria saber. Algumas não contavam certas coisas e eu não me importava com isso. Não pedia para dormir com elas, mas sempre tentava acordá-las na manhã seguinte. Foram tantos sacos e enterros que eu não lembro mais seus nomes ou a ordem em que foram e vieram.
Os conhecidos davam-me os pêsames e eu não sentia mais nada. Estava acostumado, ou “vacinado”, como meu pai dizia. A última delas foi quando eu era um adulto. Eu comprei a antiga casa da vizinha e a reformei no meu tempo livre enquanto trabalhava o dia inteiro em uma fábrica de sapatos. Eram tempos de crise econômica e nenhuma empresa na área que eu tinha feito faculdade estava contratando. Em pouco tempo subi da gerência para a área jurídica. Para minha sorte em menos de uma década ninguém se provou mais dedicado do que eu. Quando a promoção para chefe de setor chegou todos sabiam que eu merecia mais que ninguém. Até virei sócio alguns anos depois e já tinha minha mulher e filhos quando meu pai se aposentou. Ele já estava velho, com a postura encurvada e quando ficava mais doente temíamos o pior. Eu já estava grande e ainda queria protegê-lo do mundo, mas não havia nada que estivesse ao alcance das minhas mãos. Tudo que poderia fazer era amá-lo como sempre fiz e rezar pelo melhor.
Ele teve mais alguns romances com outras mulheres que se tornaram minhas amigas e ainda me ensinavam coisas, como plantar ratoeiras para pegar as ratazanas, declarar meu imposto de renda e beber um pouco de água entre as taças de vinho para não ficar bêbado rápido demais. Elas se tornaram amigas minhas e de minha esposa e filhos. Quando meu pai brigava com elas pela madrugada eu sempre ia reconfortá-las com copos de suco. Elas nunca acordaram vivas e nunca foi uma surpresa saber que tomavam os mesmos remédios que minha mãe.
Meu pai ficou muito doente em uma madrugada dessas que fugiu de uma discussão. Aquele foi o período mais triste da minha vida. Eu gastei todo o dinheiro necessário para contratar os melhores médicos para conseguir mais tempo para ele. Trouxe até mesmo pessoas de fora do país, mas isso de nada adiantou. Ele parecia ter desistido de lutar e todos frisavam que isso era vital em uma situação daquelas. Eu fui ao hospital para tentar ler as histórias que ele lia para mim quando criança, fazendo questão de imitar os tons de vozes e fazer suspense. Ele gargalhava entre tossidas e pegava com força em minha mão quando achava que a morte estava mais próxima. Pouco antes de seus últimos suspiros eu estava acompanhado de minha esposa quando ele disse que sabia de tudo e que me amava mesmo assim. Ele também pediu para eu cuidar de mim mesmo como cuidei dele por todos esses anos e eu disse que faria isso sem pestanejar.
Quando ele morreu não consegui me sentir aliviado. Senti uma tristeza imensa que me acompanhou por muito tempo. Afundei-me no trabalho e fiz questão de expandir a empresa para todo o resto do Brasil e do mundo. A cada novo investimento fora eu passava alguns meses longe de casa. Sabia que minha esposa estava infeliz e que começara a tomar os mesmos remédios que minha mãe tomava. Voltei para casa em plena madrugada e ela veio até mim. Discutimos feio. Eu pensei em fugir, contudo achei melhor deixar tudo nos melhores termos e fazer as pazes com um suco que só eu sabia fazer.
Naquela mesma noite fizemos sexo e depois disso ela me falou que a empresa tinha um nome muito genérico com os sobrenomes de todos os sócios e que deveríamos mudar para algo mais “icônico”. Na manhã seguinte ela não acordou e tive de acompanhar meus filhos em seu enterro. Eu sabia que ela estava certa e nas semanas que vieram fiz todos os esforços para convencer os outros sócios a mudarem o nome da empresa para “Barba Roxa”, uma vez que também queria homenagear meu querido e falecido pai. Afinal de contas, a cor púrpura da barba dele sempre chamou mais atenção que a minha simples barba azul.
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