Refletindo enquanto observava a paisagem que oscilava entre o vermelho e o alaranjado do Sol se pondo no horizonte, estava Raimundo, sentado com as pernas sobre a mesa da biblioteca da escola. Como era do Terceiro ano e um aluno de confiança da diretoria, conhecia todos os acessos da escola e tinha um hábito de ficar até tarde no campus lendo alguns romances para adolescentes no qual era apaixonado. Esse costume vinha principalmente pelo incomodo de ler em casa, aquele ambiente envolto de facetas e personas cansava a mente do jovem que preferia o singelo barulho do ar condicionado daquela sala vazia.
Por um momento, renunciou a leitura por conta da invasão de pensamentos que o rondavam pela conversa que teve anteriormente com seu pai no carro. Mesmo o ótimo primeiro dia que teve revendo seus grandes amigos não ocultou a presença daquele misto de medo e preocupação que o rondavam pelas palavras que ouvira — na verdade, a correria do dia só fez aquela bola de neve aumentar ao ponto que sentia-se ofegante e precisava respirar.
Um contraste entre as duas possibilidades de destino que o aguardavam passavam a dominar quando sua mente não entrava naquele escapismo de responsabilidade que sempre prezou, talvez por ser covarde demais para negar sua sina, ou atribuir a si uma culpa indireta por ser tão incapaz ao ponto de nascer sem a possiblidade de cumprir a razão pelo qual veio ao mundo. Não ter poderes era algo que fazia crescerem borboletas no seu estômago.
"Eu realmente sou imprestável. Nunca poderei cumprir o que tanto quer, pai. Talvez eu também... seja incapaz de proteger minha irmã da crueldade desse mundo. Eu só queria... não existir."
Junto desse súbito pensamento, a melancolia possuía seu olhar que não deixava ele segurar as lágrimas, que caiam seguidamente sem parar. Essa dor não era apenas de encarar aquele caminho que não havia condições de cumprir, mas também sobre o medo da outra possibilidade. Raimundo era um Buloke, e apenas isso já colocava um alvo em todos aqueles amigos dele que até então, viviam sem perigos por não estarem muito próximos. Um deles, havia acabado de reencontrar após as férias de fim de ano, João. Havia construído com aquele careca corpulento barbudo, a mais próxima definição daquilo que nomeavam "amizade", amava os momentos que compartilhavam toda aula, desde trocar respostas das matérias no qual, o outro não fazia ideia como resolver, conversar sobre as narrativas joviais que os dois eram apaixonados e ajudar o amigo a ficar com os garotos que João estava afim. Tudo aquilo era muito genuíno para o jovem Buloke e de certa forma, mesmo que não sejam aquele tipo de amizade que conversassem fora do ambiente escolar, foi permitido estabelecer um laço de confiança que antes só tinha com sua irmã Raissa.
As palavras que seu amigo trocou com ele quando os dois se viram pela primeira vez ecoavam repetidamente na mente de Raimundo:
— Fala, Raimundo! Que saudade que eu estava de você, meu mano. Estava contando os dias pra te ver de novo, veio. Tenho uma novidade muito bala pra te contar. — João tagarelava sorrindo enquanto apertava a mão de Raimundo e o puxava para um abraço enquanto bagunçava seu cabelo.
— Q-Que isso, cara! Assim fico tímido. Também tava com uma saudade enorme de tu, mano.
Ouvir que alguém "estava contando os dias para ver ele de novo" era uma loucura pra Raimundo, só pensava que não fazia sentido algum, uma pessoa tão imprestável e sem graça como ele ter gerado essa falta em alguém. Isso só aumentava a vontade interior de fugir, o desejo que acumulava era poder viver normalmente do lado daqueles que o fazem ter algum sentido para não apenas viver sentindo-se inútil. E pensar que tudo isso podia acabar por causa do seu destino. Doía, doía muito.
— Pai, esse aqui não é o caminho mais rápido para chegar até a escola. — Dizia Raimundo observando que seu pai havia pegado uma via que demorava mais alguns minutos do que a costumeira onde não tinha um transito tão intenso.
— Relaxa. É que eu quero trocar um papo com você.
A reação instantânea aquela revelação foi um questionamento de "O que foi que eu fiz dessa vez?", repensando nos últimos atos, uma gota de suor caia pela testa.
— Sobre o que seria?
— Bom, filho. Você viu que ontem o Arthur veio conversar comigo, certo?
— C-certo.
"Pera ai, será que tem a ver sobre o lance de ontem? Será que ele percebeu algo?"
— Ele veio me contar sobre aquela seita maluca de Naya que a gente vem combatendo.
— Você diz aqueles que você enfrentou a dois meses atrás?
— Eles mesmo. Parece que eles formaram uma base aqui na cidade.
— Pera ai, o que?! — Questionava o garoto, incrédulo com os olhos esbugalhados olhando para seu pai. Aqueles caras que deram trabalho até mesmo para os grandes líderes das famílias serventes estavam no Jardim dos Desejos, a qualquer momento, um grande derramamento de sangue poderia acontecer.
— Sei que parece algo improvável porque aquela base que eu ataquei parecia ser a última, mas... — Vinha uma frustração em forma de um ranger de dentes — De algum forma, aqueles desgraçados ressurgiram ainda mais fortes! Eu tenho uma teoria sobre isso...
"Mais fortes? Como assim?"
Descontinuando aquele choro enquanto olhava a paisagem que naquele momento já estava no breu da noite, um barulho veio da porta assustando Raimundo que virou rapidamente, colocou o marca texto no livro, o fechou e levantou lentamente dando passos sutis até a porta questionando:
— Ei, tem alguém ai? A biblioteca tá fechada!
"Droga, acabei perdendo a noção da hora enquanto lia. Mas quem será que está aqui tão tarde da noite? Eu não tinha trancado o porta após o João ir pra casa?"
Por sua própria segurança, após a revelação que teve pelo seu pai mais cedo no caminho até ali, Raimundo trancou tanto o portão principal da escola como a porta da biblioteca. Então, não fazia sentido algum aluno ainda estar ali, porém, ainda mantinha o beneficio da dúvida pela possibilidade de algum professor, membro da secretária ou do conselho ter voltado para pegar algo, já que tinha nas mãos, uma das muitas cópias da chave da escola.
Observando os vidros daquela porta dupla não notava ninguém pelo corredor.
"Será que alguém tentou abrir essa por engano e seguiu pelo corredor?"
Pegava as chaves no bolso da sua jaqueta de couro preta, e abria a porta com uma profunda cara de estranhamento. Quando abriu... olhou para o lado, olhou para o outro, nada. Pelo tempo que levou ali, a pessoa ainda estaria no corredor — A não ser que ela estivesse correndo, o que não seria o caso de algumas das possiblidades plausíveis de pessoas que estaria ali.
— Quem bateu a porta aqui?
A resposta não chegava, ecoando repetidas vezes pelo longo corredor.
"Será que eu estou ficando maluco? Não é possível."
Por um segundo, passou pela cabeça de Raimundo que a melancolia que o atingiu e o cansaço do dia todo fora de casa o influenciou a ouvir coisas. Até que virou novamente em direção a janela e lembrou de um detalhe importantíssimo que seu pai comentou que não poderia ignorar de forma alguma.
— Eu chuto que aqueles homens que enfrentamos ainda não eram a verdadeira força de combate deles. Eles ainda estavam testando nossa força.
— Como assim?
— Até então, não tivemos muitas baixas nas batalhas por conta que temos as graças dos anjos de Sândalo. Esse era nosso diferencial, porém sempre estranhamos uma coisa... — De repente, uma seriedade imperava o ar daquele carro de uma forma sem igual. — Os seguidores de Naya assim como nós, possuem um poder inigualável ou até mesmo equivalente ao nosso. Porém, até agora só ouvimos falar dele, e não combatemos ninguém com algo parecido.
— Bom, há a possibilidade que eles mentiram sobre "esse tal poder"?
— Raimundo, não tem como. Eu lembro de ter lido relatos em diários na última base que atacamos que descreviam perfeitamente como esses poderes eram. Não faz sentido eles mentirem para si mesmos.
— E que tal poder é esse?
— Eles chamam de "Essência". Muitos dizem que é um poder que surgiu em simultâneo as Marcas da Vontade nos seguidores mais fieis a Naya, quando Naya foi derrotado.
"Então, eles também tem um tipo de poder especifico?"
— Os usuários dessa "essência" são capazes de despertar poderes de espíritos malignos de Naya que concede habilidades insuperáveis. Para você ter uma ideia, eles são capazes de quebrar até mesmo as barreiras de proteção que colocamos nas propriedades.
— Que isso... — Aquilo era inconcebível e assustador para Raimundo, as barreiras de proteção impediam usuários com aura hostil invadir certos lugares cobertos pelas mesmas. Um exemplo disso, era a escola "Paschoal Oslo" que os irmãos frequentavam e a mansão Buloke, lugares no qual, inocentes residiam. Para alguém ser capaz de quebrar essa regra teria que ter uma força de nível inimaginável, até agora, só sabiam que os usuários da graça dos anjos podiam quebrar isso.
— É melhor você e sua irmã tomarem mais cuidado. Estou até preocupado que ela foi sozinha para escola hoje. Não é o ideal nessas condições.
— Não mesmo. Mas pai, como que identificamos alguém assim? Não quero ser surpreendido, sabe?
— Olha, Raimundo. Normalmente, os olhos deles brilham num verde brilhante e você sentirá uma pressão tão forte que a única coisa que suas pernas vão querer fazer é fugir.
"Será que algo assim era possível?"
Aquele mesmo pensamento de mais cedo surgia em Raimundo ao virar para mesa perto da janela ao final da extensão daquela sala, onde estava lendo. Só que antes, o pensamento era referente ao questionamento de existir alguém com essa aura, entretanto, agora esse pensamento surgia diante de uma pressão que paralisava seu corpo que não conseguia mover um dedo sequer...
Subitamente, a janela onde observava o pôr do Sol foi quebrada e dois homens encapuzados com uma túnica verde invadiam a biblioteca. Ao levantarem da pose de pouso, Raimundo notou algo que o fez engolir seco, era perceptível embaixo dos seus capuzes, quatro pontos verdes que pareciam saltar. Porém, Raimundo estava sozinho e sem poderes para reagir. Seria ali o momento da sua morte?
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