Ela correu o mais rápido que podia. Uma única linha gélida escorreu pela silhueta do seu rosto e então caiu. Os batimentos, frenéticos em seu peito, pareciam que iriam explodir a qualquer instante, no entanto, não podia parar.
Aliás, um mínimo deslize qualquer, poderia custar a sua vida.
Algo a perseguia, contudo, tinha a menor ideia de quem, ou o que, a perseguia. E também, não fazia questão de saber. Agora, para Rie, só importava conseguir escapar com aquilo em mãos, sã e salva. Era o que precisava. E era o que faria. Isso se tratava de algo muito importante. Uma esperança.
— Você conseguiu recuperar o objeto? — perguntou uma voz feminina ansiosamente, através do comunicador na orelha esquerda de Rie.
— Sim — respondeu de forma rápida e ofegante.
Agora não era hora de conversar, caso contrário, o seu, ou os seus, perseguidores poderiam a alcançar. Essa simples adaga, que ela assegurava fortemente com ambas as mãos sobre o seu peito, por mais insignificante e inofensivo que possa aparentar ser, era o motivo disso tudo. Fariam quaisquer coisas para ter aquilo de volta em mãos. Entretanto, essa se tratava de uma opção que ela jamais permitiria.
Esse era um presente muito importante para alguém que não saia de sua cabeça. E isso lhe dava ânimo em meio a esse tumulto.
— Perfeito! Então, a partir de agora serei o GPS humano dessa linda — A preocupação na voz da comunicadora se dissipou e assim deu lugar a um tom brincalhão.
— Ei! Não é hora pra falar essas besteiras, sua louca!
— Sempre é hora de dizer que você é uma diva! Mas, antes de tudo, vire à direita no próximo corredor.
O chão metálico ressoava o som de passos sem parar, que só se tornavam cada vez mais altos. Mesmo assim, ela não poderia deixar de ser levada pelo medo e ansiedade, caso fosse alcançada. Portando, respirou fundo, agora mais leve graças às falas de sua amiga e continuou a correr.
O caminho em que percorria, tratava-se de um corredor em espiral onde descia e se tornava cada vez mais largo conforme chegava mais perto da superfície. A parede e o teto, entrelaçados por tubos dourados que serviam de suporte, eram feitos de vidro, assim, permitindo visualizar no exterior um mundo finito à noite.
A própria cidade, no lado de fora, com seus edifícios e construções feitos de um material branco, perfeitamente polidos, eram decorados com esse mesmo dourado. Podia possuir uma vegetação escassa, porém, tudo era feito de uma arquitetura de ponta, com o visual mais chique possível.
Simplesmente nojento.
Mesmo assim, ela ainda precisava manter-se firme. Jamais permitiria que tomassem o pequeno objeto de suas mãos. Essa adaga guardada em uma bainha preta se tratava da coisa mais importante e valiosa para ela agora.
— Apenas siga reto! A saída vai estar na sua frente!
Então, foi carregando toda essa motivação que Rie atravessou a porta e adentrou naquele ambiente desagradável. Continuou dando um passo atrás do outro e fugindo entre as ruas e calçadas desse lugar que aparentava ser perfeito. No entanto, a situação não poderia continuar assim por muito mais tempo.
E assim aconteceu.
Inúmeras linhas cruzaram no seu arredor, colidiram contra o chão e quebraram-se em partículas douradas, assim, dando-lhe o sinal para o que havia à sua frente. Estava completamente cercada.
Inúmeros soldados, uniformizados com uma armadura preta metálica de alta qualidade, estavam bloqueando o seu caminho em todas as direções. Os passos dos perseguidores que, até então, ela apenas escutava, enfim tomaram forma.
— Isso é ruim…
Diversos rifles de assalto, nos quais podiam ter seus gatilhos apertados a qualquer instante, foram apontados em sua direção. Era só uma questão de segundos para ser baleada. Contudo, aqueles que a rodeavam, não pareciam ter deixado quaisquer brechas para passar, nas quais lhe servisse como rota de escape.
Portanto, Rie teria que fazer algo arriscado.
Ela, então, deu um passo para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
E foi assim que algo aconteceu.
Pequenas partículas, de um brilho fosforescente azul, começaram a emergir suavemente de seu corpo, a ganhar tamanho e jorrar incessantemente. Essa quais lhe deram força para que corresse em direção aos inimigos e saltasse, em meio a um céu onde linhas douradas eram desenhadas.
Com sua silhueta projetando um rastro luminoso, moveu-se suavemente pelo ar, atravessou um muro gigantesco e aterrissou no outro lado, de forma graciosa. Agora em um cenário drasticamente diferente do anterior.
— Nossa… que alívio… — disse a comunicadora em um suspiro.
— Daqui a pouco eu volto pra casa, tá?
— Certo.
E então não se ouviu mais nem um som. Se tratava do sinal de que agora estava segura. Mas, ainda não havia acabado. Ainda lhe restava fazer aquilo que aguardou por tanto tempo. Rie iria se encontrar com aquela pessoa especial. Mal conseguia conter o ânimo de só imaginar que, finalmente, conheceria alguém do mesmo tipo.
— Tomara que ele seja bonito.
* * *
Atraído por uma canção na qual não deveria existir ali, ele acelerou o ritmo dos seus passos. Era estranho, pois se tratava de algo incrivelmente nostálgico.
Falando a verdade, o mesmo podia se dizer para este lugar, aliás, seis anos já se passaram desde a última vez. No entanto, mesmo sem entender o porquê, o sentimento causado por este som lhe passava algo mais intenso que o restante. Algo gelado e confortável como a brisa numa manhã de primavera.
E, ao mesmo tempo, trazia uma dor sem fim.
Portanto, ele continuou seguindo adiante em meio a este ambiente deplorável. Uma cidade em pedaços que já havia sido tomada completamente pela vegetação, onde não se encontrava uma pessoa sequer entre as ruas. Entretanto, a razão de não haver ninguém era óbvia, aliás, o sol sequer tinha começado a nascer — todos ainda estavam dormindo.
Aí estava o principal motivo dessa melodia, nesta hora e lugar, se tratar de algo tão enigmático. Entretanto, a resposta para esta questão foi-lhe entregue de uma vez só. Tudo havia sido cortado por um silêncio repentino. E então algo que o prendeu por completo.
Foi como se um feitiço de magia tivesse sido jogado nele.
— Você finalmente chegou! — Uma voz animada ecoou pelo ambiente. E em reação, a única coisa que pode fazer foi inclinar levemente sua cabeça para o lado, em confusão.
Uma garota escorada sobre o parapeito na borda deste local, ao lado de uma torre com sino. Ela escutava música com um par de fones de ouvidos e, até então, cantava junto. E por mais surpreendente que possa ser, ela estava sob a beirada de um precipício.
Era muito bonita. Usava um blazer escolar claro com um vestido preto por baixo. Possuía um físico magro, pele bem clarinha e lábios tingidos de rosa. Seu cabelo, totalmente branco, brilhava com a luz da lua, e seus olhos, de um azul muito forte, estavam vidrados nele com uma inocente expressão de curiosidade.
— Quem é você?
Deixando essa total surpresa de lado. Sim. Desde o começo, ele de fato havia combinado de se encontrar com alguém nessa área nada convencional. Contudo, a pessoa na qual ele imaginava esperar, definitivamente, não era ela.
E o silêncio permaneceu da forma mais desagradável possível, sem um sinal sequer de que fosse respondê-lo. Ela apenas enrolou os fios no celular e deu um passo em sua direção. Mas a garota não fez somente isso. Investiu de uma vez só até o garoto e, obviamente, da forma menos convencional possível.
Pequenas partículas, como cacos de vidro, de brilho fosforescente da cor de uma safira, jorraram de seu corpo. E, então, ela atravessou a distância entre os dois de forma suave, deixando um rastro no ar, assim aterrissando na frente dele num instante.
O susto que ele tomou quase fez com que perdesse o equilíbrio. Aliás, isso foi muito repentino. Jamais esperaria que ela fosse usar a aura, ou simplesmente magia, para se mover nessa curta distância.
— Hmm… É bem como eu pensei mesmo, os seus olhos possuem um segundo tom muito interessante — disse ela, inclinando seu corpo para frente, com as duas íris envolvidas por uma energia luminosa que aos poucos se apagava, fixadas nele.
Estavam próximos o suficiente um do outro, o bastante para que os rostos dos dois quase se tocassem. A face dela demonstrava uma expressão inocente, porém, muito curiosa. E em meio a isso, um misto de emoções borbulhavam na cabeça dele. Enquanto a achava fofa e gostaria de apreciar o que estava bem diante de si, ainda assim, era desconfortável o suficiente ao ponto de cogitar se atirar de costas contra o chão para manter a distância.
— Ah… Muito obrigado, eu acho… — Ele desvia o olhar pro lado — Meio que… isso aqui tá um pouco esquisito, não?
A garota, por um segundo, paralisa e então, com as bochechas vermelhas, dá um pequeno pulo para trás soltando um grunhido estranho e diz:
— Desculpa.. Me… Me desculpa. É que… bem, sabe? Curiosidade. Como não paravam de falar sobre você, eu queria te ver logo, então… — falou ela, toda atrapalhada, até o som da sua voz se tornar baixo o bastante para sumir.
A maneira como ela gesticulava, balançando as mãos, de um lado para o outro, desesperadamente, o fazia ficar descontrolado internamente em conjunto. Entretanto, independente dos risos que tentava prender, ele num segundo organizou todos os seus pensamentos e assim disse:
— De todo o modo, você ainda não respondeu a minha pergunta…
Agora não adiantava mais ficar deprimido pela pessoa, na qual esperava que viria lhe encontrar, ter sido outra.
— Quem é você? O que faz aqui?
A garota inclinou a cabeça para o lado e olhou para ele confusa.
— Hm… acho que tem uma, a mais aí, hein?
— É só impressão.
Por segundo ela fez uma cara de quem dizia: “é sério que você meteu uma dessas?”, porém, sumiu numa questão de milésimos. Ela deu um sorriso e então falou:
— Eu sou Rie Koike. Fiquei encarregada de vir receber você.
— Me chamo Jun Asano. É um prazer.
— Eu já sabia.
Ao ouvir essas palavras, a face de Jun congelou de uma vez só, perante a Rie que tapa a boca com a mão, tentando esconder o riso. Ela, sem sombra de dúvidas, estava zoando com cara dele e, aparentemente, adorando fazer isso.
— Bem, também é um prazer te conhecer — disse Rie dando um passo em direção a Jun, com os olhos fixados no dele.
Para onde que foi toda aquela vergonha de antes? Isso parecia ser um enigma sem solução. Ela, simplesmente, mudou de atitude repentinamente.
— E aqui está o seu presente de boas-vindas!
Ela lhe estendeu as mãos, nas quais asseguravam um pequeno objeto. Uma adaga preta azulada, guardada em uma bainha igualmente escura. Sem hesitar, ele pegou, e a garota deu novamente um passo para atrás.
— Me deu muito trabalho pra trazer isso até aqui, viu? Sendo assim, eu quero que você pense em mim todas as vezes que for usar. O meu esforço não pode ter sido em vão. — falou enquanto gesticulava com o dedo.
— Que coisa fofa… Mas de qual pessoa mesmo, que eu tenho que pensar?
Rie, emburrada, cruzou os braços e o encarou, como se falasse: “seu chato!”, mas Jun apenas tentou se conter para não rir, o que fez Rie ficar com uma face avermelhada. A garota, obviamente, não falava aquilo a sério. O mesmo valia para ele, aliás, essa era a primeira vez em que eles se falavam.
Ele apenas se concentrou em sacar o seu novo pertence. O recorte da lâmina fazia a guarda mão, que era quase inexistente. Possuía dois gumes, sendo praticamente escura por completo, exceto pelo contorno onde ficava o fio, no qual era prateado. Contudo, Jun não conseguiu continuar analisando o presente que acabara de ganhar.
Ao som de um forte estrondo, algo voou e ricocheteou contra o chão.
Repentinamente, o barulho de inúmeros passos começou a ecoar de todas as partes. No reflexo, ele se virou e, assim, avistou algo que fez um calafrio percorrer por todo o seu corpo. Soldados vestindo armaduras negras, empunhando espadas envolvidas por um brilho dourado e armas de fogo, nas quais eram apontadas para os dois. Estavam cercados.
— Nossa! Como vocês são insuportáveis! — Rie exclamou cerrando os punhos.
Então, uma linha dourada foi desenhada pelo ar. No instinto, Jun moveu o seu braço, parando com a adaga na frente da bala. A impressão foi de que sua mão havia aparecido naquela posição instantaneamente, no entanto, enquanto tinha claramente dado para ver se movimentar. Foi como se tivesse reparado num breve rastro que fora deixado.
Mas antes mesmo que pudesse processar, os cabelos deles já haviam sido empurrados para trás, deixando uma corrente de ar passar. E desta forma, pequenas partículas douradas puderam ser avistadas, assim, sinalizando que aquele projétil se partiu em dois.
— O quê!? — expressou Rie em surpresa, ainda sem conseguir processar o que acabara de ver.
Jun mordeu os lábios e preparou-se mentalmente para ter que agir, caso necessário. Mesmo sem entender o que estava acontecendo, ele ainda não ficaria parado — ainda mais para a ameaça desse tipo de indivíduos arrogantes, que se autodenominam como Ones.
— Vem comigo — Rie disse enquanto pegava Jun pela mão e o puxava em direção ao precipício, em um ato repentino.
Fragmentos do mesmo brilho azul anterior envolveram a garota que corria de mãos dadas. E então, quanto pode se dar por conta, os seus pés já não tocavam mais o chão. Um forte impulso os lançou para o alto, entre estrelas cadentes de ouro que caiam no sentido contrário.
E em meio a esta vastidão uma torre que tocava os céus pode ser vista.
Após uma grande parede de mármore responsável por dividir um mundo de duas realidades, lá estava, ao centro de tudo, a imensa estrutura com um anel na ponta. Algo tão magnífico, mas era cercado por uma ilusão sem fim. Um domo feito de inúmeras linhas poligonais nas quais apenas deixava a luz e a sombra do outro lado passar.
— É bonito, você não acha? — perguntou ela com um olhar encantado.
No entanto, entre o vento e as cores sem fim, o que ela obteve foi apenas um silêncio profundo. Para Jun, não havia como conceber tais palavras. Esta vista, de algum modo, lhe era simplesmente nojenta.
* * *
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