– Sim, por isso que, por mais que haja muitas divergências nos casos, não consigo tirar da cabeça que ela foi outra vítima daquela coisa. Não consigo pensar em outra explicação para ela tirar a própria vida… – Houve certo receio por parte de Ronald na última frase. – Susan… Também foi uma vítima dele, certo? Não tem como ter sido outra coisa! – Ronald parecia meio perturbado ao dizer tais coisas.
– Talvez, mas eu honestamente espero que não. Se o Apodítico levou dois membros da sua família assim, significa que ele no mínimo te conhece e pode estar próximo de você, fico preocupado com o que possa lhe acontecer… – Tais palavras de Rudy pareceram apenas alimentar o nervosismo de Ronald, no entanto, o amigo acabou por notar. – Ah, me desculpe! Não foi de minha intenção assustá-lo. Eu nem acho que seja muito provável, até porque das vítimas até o momento, poucos foram os casos em que morreram duas pessoas com alguma relação. Isso diminui as chances dele estar de olho em você.
– Se ao menos soubéssemos como ele seleciona os alvos… Tem tanta coisa bizarra sobre esse caso que, às vezes, começo a me questionar se esse Apodítico é mesmo um ser humano. – Logo após dizer isso, Ronald tomou o resto do café em sua mão. – Bem que gostaria de mais um copo. Irônico, umas semanas atrás, eu queria ter dinheiro para dar um pouco a minha filha, e agora que aparentemente ando bem de bolso, ela já não está mais entre nós… – Comentou, desanimado.
– Não tenho palavras para expressar como sinto pela sua situação… – Respondeu o amigo com empatia.
– Só espero pegarmos logo esse sujeito.
– Larry está trabalhando bastante nele. Não é à toa que tem saído bem mais tarde do trabalho nos últimos dias. Ele realmente está dedicado, viu? Mesmo nós só pegamos essa carga em alguns dias. Não é de se espantar que tenha subido tanto na carreira, mesmo sendo tão novo.
– Ontem me pediu para investigar algumas pessoas que têm agido estranho ultimamente, mas não achei nada muito relevante.
– Sim, ele está querendo prevenir mais casos. Um dia desses, me mandou fazer a mesma coisa. Hoje disse que tinha uma pessoa na qual ele estava de olho, era um ex-presidiário, algo assim. Teria me pedido para ir investigá-lo se eu não tivesse tido que tomar conta de outro caso de última hora, então pediu a Edmund e Rudolf.
– Não tive muita coisa para fazer hoje, foi bem tranquilo num geral.
– Pois eu tive logo uma denúncia de espancamento para cuidar.
– Nossa! Que horror… – Disse Ronald levemente surpreso.
– O motivo foi algo bem peculiar. Eram dois rapazes de 18 e 20 anos, eles haviam saído para uma festa. O mais jovem detestava bebidas alcoólicas, já o mais velho estava totalmente embriagado na festa e tentou a todo custo fazer o mais jovem beber. Foi aí que ele teve um surto e espancou o outro.
– Meu Deus! Precisava ter chegado a tanto?
– Ha, ha! Eu também pensei a mesma coisa. Ele não batia bem da cabeça, mas eu estaria mentindo se dissesse que não consigo compreender o que leva uma pessoa a isso. – Disse Rudy, risonho. – Imagine uma pessoa que passa a vida inteira construindo uma perspectiva negativa sobre algo, abominando completamente tal coisa, para que chegue um momento em que ela acabe tendo que fazer o que tanto abominava? Seria algo bem chocante, como se o mundinho dela tivesse desabado. Nossos valores e crenças constituem uma parte fundamental de nós. Ir contra eles muitas vezes é como ferir a nós mesmos. Há quem não consiga viver indo contra o que acredita. Inclusive eu acho que, fora as leis, isso muitas vezes é o que impede as pessoas de fazerem coisas ruins, pois ninguém quer se sentir horrível.
– É… Você está certo. Isso me lembra de um presidiário que vi uma vez, traumatizado por ter cometido homicídio. Ele era bem jovem, fiquei espantado quando soube que havia matado alguém.
– Os mais jovens tendem a serem mais fáceis de quebrar dessa forma mesmo, já que não tem muita maturidade para lidar com essas coisas.
Ronald
deu um suspiro e colocou a mão no bolso do sobretudo para aquecê-la.
Notou que havia algo lá, e quando tirou do bolso, lembrou-se de algo que
tinha para fazer.
– Aliás, Rudy, você gosta de Michael Jackson, né?
– Ouço algumas músicas de vez em quando. Meu filho quem gosta mais. Tem vários CD’s na casa dele. Por que a pergunta?
Ronald mostrou o CD para Rudy.
– Minha esposa havia me dado esse disco quando estávamos namorando. Só tem uma música, foi ela mesma quem gravou. “You Are My Life”. Conhece?
– Ah sim! É uma música muito bonita, não me admira que ela tenha escolhido logo ela, a letra é linda! – Disse Rudy com um amigável sorriso.
– Sim, ela dizia que se lembrava de mim toda vez que ouvia essa música, por isso gravou-a nesse disco e me deu.
– Isso foi muito belo da parte dela.
– É, mas… – Ronald fez uma expressão levemente azeda no rosto – Desde que ela morreu, eu não consigo terminar de ouvir essa música. Não sei exatamente o porquê, mas quando a ouço, sinto um tremendo desconforto. Lembranças da minha esposa vêm à minha cabeça. O casamento; aniversários nossos ou do nosso casamento; passeios que fizemos; encontros; várias lembranças felizes com ela. Por algum motivo, isso me sufoca muito. Não apenas isso. Também venho tendo pesadelos com ela às vezes, e quase sempre são em noites em que tento ouvir o conteúdo desse disco. Não queria deixar ele lá só de decoração, mas também não queria jogar fora. Não quer ficar com ele pra você? Ou sei lá, dar para o seu filho.
– Rudy parecia levemente surpreso com a declaração de Ronald.
– Bem, não sei se seria adequado… Quero dizer, imagino que seja muito doloroso para você lembrar de que ela se foi. Talvez seja isso que esteja causando o desconforto para com a música e tudo mais, mas acho que o melhor seria você tentar olhar as coisas de outra perspectiva. Como você sabe, eu também perdi a minha esposa, e ainda que não tenha sido por suicídio, como no seu caso, posso dizer que entendo em partes a sua dor. Lembrar de que ela morreu é… Bem difícil. Eu a amava muito, era como se ela fosse o meu mundo. Quando a perdi, senti como se eu mesmo tivesse morrido por dentro. Tudo parecia frio e sem vida para mim. Eu não tinha mais vontade de fazer nada, o mundo simplesmente não tinha mais cor alguma além de cinza. Sequer queria viver mais, os momentos que passei com ela passaram a ser dolorosos para mim… – Rudy parecia sofrer quando se lembrava de tais coisas. – Mas sabe, depois de um tempo, eu comecei a pensar que ela não iria querer isso. Amávamos um ao outro reciprocamente, e tal como eu a queria viva e feliz, ela também iria me querer assim. Iria querer que eu me lembrasse dos nossos bons momentos com alegria e gratidão por terem acontecido, e não com tristeza. Por isso que não me arrependo de nada que fizemos juntos. Foram momentos realmente felizes, e sou grato por isso! – A expressão cabisbaixa de Rudy havia sumido, dando espaço a um caloroso e gentil sorriso. – Se não me engano, o conteúdo dessa música foi direcionado aos dois filhos do cantor na época, e retrata muito bem o amor que ele sentia por eles. Veja só, toda a música em si é uma declaração do quanto aquelas pessoas são especiais para ele, só notar pela própria letra! “Você é o sol, você me faz brilhar como as estrelas a noite; você é a lua que ilumina o meu coração; você é meu dia; minha noite; meu mundo; você é minha vida” – Rudy cantarolava – Não é lindo?! Se sua esposa disse que se lembrava de você com essa música, só mostra o quanto ela te amava! Você era como o mundo dela! Ela não iria querer vê-lo dessa forma encarando tudo que passaram juntos assim, iria? Então tente pensar dessa maneira quando tentar escutar essa música novamente.
– Eu… Vou tentar. – Respondeu Ronald, tentando absorver tudo que Rudy disse.
– Maravilha! Tenho certeza que vai te fazer muito bem!
– Muito obrigado por me ouvir e aconselhar – Ronald agradecia com um sorriso gentil.
– Ah, que isso! Amigos são para essas coisas.
Os dois amigos passaram mais alguns minutos conversando descontraidamente até que o telefone de Ronald tocou. Era Larry. Atendeu-o de imediato.
– Ronald? Rudy está aí com você?
– Está sim. O que foi?
– Sei que é bem espontâneo, mas poderiam vir aqui agora? Estou em uma das salas de interrogatório.
– Bom, acho que sim, mas o que aconteceu?
– Você nem vai acreditar, mas conseguimos pegar alguém vivo que acreditamos ter entrado em contato com o Apodítico.
Ronald chocou-se com a notícia.
– O imobilizamos antes que pudesse tirar a própria vida. Está aqui agora, inconsciente. Irá acordar daqui a alguns minutos. Gostaríamos de interrogá-lo, e por isso, gostaria que vocês, como membros da investigação, estivessem presentes.
– Certo… Iremos aí de imediato.
Ronald explicou a situação para Rudy, que também ficou surpreso. Os dois se levantaram e foram em direção à delegacia. Enquanto caminhavam pelo parque em direção ao carro, algo estranho aconteceu. Cerca de alguns metros de ambos, uma mulher desconhecida começou a acenar para eles. Rudy percebeu e avisou Ronald, que ficou assustado quando viu.
– Eu não a conheço. Tem certeza de que não está acenando para você? – Perguntou Ronald.
– Absoluta. Nunca a vi na minha vida.
– Bem, vamos apenas ignorar e seguir caminho – Ronald dizia com tensão estampada em seu rosto. Recomeçou a andar.
– Você está bem? Parece nervoso – Indagou Rudy enquanto acompanhava o amigo.
– Ah, desculpe. Depois de ter minha filha e talvez minha esposa mortas por alguém que sequer sabemos quem é, ver alguém que não conheço acenar para mim assim me assusta. É só uma paranoia… Não consigo evitar pensar na possibilidade de eu estar na mira dele…
– Ah, que isso. Acho que ela apenas te confundiu com alguém, não precisa se preocupar tanto.
~~
Ronald e Rudy não demoraram muito para chegar à sala de interrogatório. A sala era dividida em duas áreas separadas por uma parede de vidro com uma porta na extremidade direita. No espaço menor da divisão, estavam Rudy, Edmund e Rudolf sentados observando o que havia no outro lado, onde Larry e Ronald estavam sentados lado a lado frente ao sujeito, divididos por uma mesa. Ronald estava com um gravador em mãos. O sujeito havia acordado alguns minutos antes deles chegarem e estava de cabeça abaixada. Era um homem magro, de meia idade, cabelos castanhos, cheios e bagunçados. Usava vestes sociais.
– Você é Jean Rodrigues, certo? Ex-presidiário. Atualmente trabalha como atendente de mercado. – Larry cortara o silêncio.
O homem, no entanto, não respondeu. Continuou de cabeça baixa, como estivera desde que Ronald chegou àquela sala.
– Você entrou em contato com o Apodítico, certo?
De repente, o homem começou a tremer.
– Minha… – Sua voz assustada era audível. – Vida sempre foi mergulhada em escuridão. Tive que presenciar e fazer coisas horríveis para sobreviver, mas em todas elas, me mantive são. Superei toda a escuridão que se pusera em meu caminho… – O homem ficou em silêncio por alguns segundos antes de prosseguir. – Mas aquela coisa… – Seu tremor começou a ficar mais intenso. – Aquilo me mostrou uma escuridão ainda mais vasta do que eu poderia sonhar em presenciar…
Tanto Ronald quanto Larry ficaram assustados com o que o homem acabara de dizer. O silêncio predominou naquele lugar por alguns segundos.
– E que… Escuridão era essa…? – Larry perguntou, numa mistura de confusão e medo.
O homem, no entanto, ficou em silêncio.
– Jean Rodrigues, você está ouvindo? – Insistiu.
O homem então, levantou lentamente a cabeça. O terror que havia em seu rosto, tão semelhante com o de Susan no dia de sua morte, com aqueles olhos anormalmente abertos fixados em Larry, o deixara paralisado.
– Eu sou a besta. – O homem declarou.
Larry se encontrava tão assustado e confuso que precisava de intervalos de tempo em silêncio para continuar o interrogatório.
– Que… Besta é essa…?
O homem virou a cabeça para baixo novamente e permaneceu em silêncio por alguns segundos, no entanto, não demorou muito para voltar a falar. Começou a recitar coisas estranhas, a princípio sem sentido, porém, rapidamente Larry e Ronald conseguiram identificar. Era o texto em formato de poesia que algumas vítimas do Apodítico citaram.
– Tá gravando isso, Ronald? – Larry perguntou, quase sussurrando para o colega ao lado.
De repente, o homem parou de recitar e fixou seus olhos em Ronald.
– Ronald… – Ele o disse. – Você está fundo no poço…
Ronald estava confuso e assustado.
– Ele vai atrás de você.
Ao ouvir essas palavras, Ronald sentiu o estômago congelar. Estava paralisado. Esboçou uma expressão quase tão apavorada quanto o homem à sua frente.
– Não… Se entregue… Ao fim…
Essas foram as últimas palavras do homem. Após isso, começou a tossir intensamente, caiu no chão, começou a se debater e, ao que podiam notar, estava cuspindo sangue.
Larry, Rudolf, Edmund e Rudy imediatamente foram até o homem para socorrê-lo e saber o que havia acontecido. Ronald, porém, permaneceu paralisado e imóvel. Larry então olhou para o colega com o rosto transbordando de preocupação, mas nada tão intenso quanto o medo estampado no rosto do amigo naquele momento.
Jean Rodrigues havia mordido a língua e engasgado com o sangue. Mesmo que tenham tentado socorrê-lo, ele já estava morto um tempo depois do evento. Dois dias se passaram; Ronald estivera paranoico e aflito desde as últimas palavras de Rodrigues. Certificava-se todos os dias de ter trancado todas as entradas da casa quando saía e voltava de lá. Também andava sempre com sua arma por perto, mesmo na hora de dormir.
Era tarde da noite do dia anterior à folga de Ronald. Terminara de certificar-se de que a casa estava impenetrável. Estava agora em seu quarto. Ficara tão focado no recado de Rodrigues que, durante aqueles dois dias, acabou esquecendo-se da conversa que tivera com Rudy, especificamente sobre o CD.
Começou a encarar o disco ao lado do rádio e refletir sobre tudo que havia sido dito pelo amigo. Realmente, levando em conta o amor que a esposa tinha por Ronald, ela não iria querer vê-lo daquela forma. Certamente não desejaria que ele encarasse tudo que passaram juntos com tal negatividade. Não deveria lembrar-se dela com dor, mas sim com gratidão.
Ronald pegou o CD e, sem pensar muito, o pôs no rádio. A doce melodia começara a ecoar. Ronald tentou pensar novamente no que Rudy o havia dito, e então as lembranças começaram a aparecer em sua mente. Dezenas de momentos felizes com sua esposa apareciam um após o outro. O homem estava preparado para aceitá-los e reinterpretá-los, ou assim havia pensado.
De repente, todas aquelas imagens sumiram de sua mente, e uma única predominou: O olhar horrível que sua esposa o lançou no dia de sua morte. O estômago de Ronald começou a se revirar, sentiu-se agitado de tanta perturbação e, sem pensar, atirou o braço com força em direção ao rádio, derrubando-o no chão e quebrando-o.
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