Passaram-se alguns dias. Ronald voltava para casa refletindo um tanto frustrado sobre o quão pouco a investigação tinha avançado desde então. Tudo continuava enevoado. Sequer dava para acreditar que o Apodítico era real. Apesar de ainda ser pouco provável, devido às divergências, o conteúdo das gravações o fizera cogitar a possibilidade de que sua mulher havia sido mais uma das vítimas do Apodítico. Não conseguia tirar da mente o olhar perturbador que havia recebido dela no dia do ocorrido.
Finalmente em casa, Ronald entrou. Como de costume, deixou o sobretudo e os materiais de trabalho no sofá e avisou de sua chegada, no entanto, não houve resposta.
– Sú? – Chamou.
Novamente, sem resposta.
Era comum que a filha não respondesse à primeira chamada, principalmente nos últimos dias em que andara triste, no entanto, era a primeira vez que Ronald experimentava o silêncio, mesmo chamando duas vezes. Foi até a cozinha para ver se ela estava ocupada e não encontrou ninguém. Naturalmente, o mais óbvio a se pensar é que ela estava em seu quarto; isso justificaria o porquê de não ter respondido. É claro que ela apenas não havia escutado, visto que seu quarto ficava consideravelmente longe da porta da casa. Foi, então, em direção ao quarto da garota, passou pelo corredor que ligava a cozinha a um cômodo da casa onde se encontrava o banheiro. Antes que continuasse a seguir caminho, notou que a porta do banheiro estava encostada, e a luz estava acesa. Como Susan geralmente trancava a porta quando vai usar o banheiro, presumiu que não tivesse ninguém lá e que ela só havia se esquecido de apagar a luz ao sair, então abriu a porta para apagar a luz. Antes que pudesse fazer qualquer coisa ao entrar naquele banheiro, no entanto, uma cena tirou-lhe a atenção.
Sua filha estava ajoelhada em frente à privada, com a cabeça sobre ela. Não parecia estar bem.
– Sú? O que está fazendo aí? – Ronald foi se aproximando devagar da garota. Ao chegar perto o suficiente, notou que ela estava trêmula, muito mais trêmula que o normal. Havia vômito dentro do vaso, e sua boca estava suja. Ronald chocou-se com tal cena.
– Filha? O que aconteceu?! – Ronald falou, quase gritando de tanto nervosismo. A garota lentamente foi virando a cabeça para o pai. Ao ficarem cara a cara, Ronald sentiu um frio na barriga.
Não conseguia descrever o quão horrenda era a expressão no rosto da menina. Era como se ela tivesse acabado de voltar do inferno. Cada traço daquele rosto exalava pavor. Os olhos anormalmente abertos encaravam Ronald, amedrontando-o.
– SUSAN? O QUE RAIOS ACONTECEU? – Vociferou Ronald, mas a menina não respondia, continuava o encarando em silêncio. Ronald rapidamente tentou levantá-la, apoiou-a em seu ombro e levou-a até a pia do banheiro. A garota estava com a cabeça sobre a pia enquanto ele tentava lavar seu rosto com desespero.
– Filha, por favor, fale comigo! O que houve? Por que você está assim? – Ronald tentava desesperadamente se comunicar com a garota. De repente, ouviu um resquício de sua voz.
– E-Eu… – Estava rouca, como se tivesse gritado por vários minutos.
– Você o que?
– E-Eu vi… Um monstro.
Ao ouvir aquilo, Ronald arrepiou-se.
– E ele me mostrou… Algo ainda mais aterrorizante… – A garota gaguejava carregada de pavor.
Ronald lembrou-se então do caso que estava investigando.
Não. Era impossível. Não tinha como seja lá quem for ter entrado na casa. A filha chegava da escola cerca de meia hora antes dele voltar do trabalho. Nesse meio tempo ela ia tomar banho e se arrumar, nisso levava um bom tempo, e pelo que Ronald notou, ela já havia se arrumado. Como alguém poderia ter entrado, apavorado-a dessa forma e saído em um espaço de tempo tão curto, e sem que Ronald notasse? Pensou que o contato poderia ter sido pela internet, mas não conseguia imaginar nenhuma forma de alguém a deixar naquele estado simplesmente enviando mensagens, fotos, vídeos, ou seja lá o que for, por um período de tempo tão curto. Não. Aqueles olhos não eram olhos de quem havia se assustado por simples contato pela internet. Era como se ela realmente tivesse presenciado algo hediondo.
Lentamente, Susan tentou levantar a cabeça e ao fazer isso, gritou tão alto que Ronald pulou de susto.
– Ele está aqui… Vai me levar… Ao fim – A garota sussurrava enquanto mantinha as mãos na cabeça, como se estivesse desesperada.
Claro. O fato de seja lá quem for que tenha invadido a residência ainda não ter saído dela tornava os eventos mais críveis para Ronald, no entanto, saber que um desconhecido se escondia em alguma parte da casa o deixou ainda mais aflito do que estava.
Havia deixado sua arma no sofá junto com as outras coisas do trabalho. Se o intruso tivesse chegado até lá, seria o fim. Não ouviu passos até lá nem nada do tipo, no entanto, estava tão chocado com a situação de sua filha que não podia confiar. Queria levar a garota com ele para garantir a segurança dela, mas no estado de choque em que se encontrava, não daria para movê-la muito longe daquele banheiro.
Ronald então inclinou a cabeça para fora do banheiro e observou atentamente o cômodo. O corredor que levava aos quartos estava escuro. Não havia som algum ou qualquer resquício de que alguém tivesse passado. Lentamente retirou a chave da fechadura de dentro do banheiro, saiu dele e trancou-o por fora. Desse modo, poderia garantir que sua filha estaria segura. Em passos lentos, seguiu extremamente aflito até a cozinha. Não fazia ideia de como era o intruso, onde estava e se estava armado ou não, mas não podia perder a calma.
Ao chegar à cozinha, ligou a luz. Não havia ninguém lá. Foi devagar até o armário e de lá retirou uma faca. Estava bem ao lado da sala de estar, o último cômodo daquela direção. Se o intruso não estivesse lá, significaria que ele ainda não havia se movimentado muito de onde esteve desde que Ronald chegou; portanto, só poderia estar em seu quarto ou no de Susan. Ronald poderia ir até a sala e pegar sua arma, dessa forma, procuraria o invasor com mais segurança. O homem inclinou a cabeça devagar para a entrada que levava à sala de estar.
Para seu alívio, não havia ninguém lá. Foi até a sala e pegou o seu revólver. Colocou a faca em cima da mesa da cozinha e seguiu para o cômodo em que o banheiro ficava. O corredor que levava aos quartos de Ronald e Susan continuara escuro e vazio.
– Seja lá quem estiver aí, saiba que estou armado. Não tem para onde fugir! Apareça agora! – O homem trovejou com firmeza, apontando a arma para o corredor.
Não houve resposta.
Ronald então foi se aproximando devagar do corredor. Chegando ao fim dele, viu que a porta de seu quarto estava fechada enquanto a do quarto de Susan estava aberta. Foi em direção ao quarto da filha com a arma em mãos. Ao chegar lá, acendeu a luz. Estava vazio. Ronald começou a vasculhar em silêncio; se o intruso estivesse em seu quarto, ele ouviria o barulho da porta abrindo, caso a indesejada visita tentasse fugir. Checou todos os lugares possíveis, mas não encontrou ninguém.
Só lhe restava o seu quarto. Era certo que, se havia mais alguém naquela casa, estaria ali. Ronald foi em direção à porta.
– Eu sei que você está aí. Vou lhe dar cinco segundos para sair. – Vociferou, ainda com a arma em mãos.
– Um… Dois… Três… Quatro…
Não houve resposta alguma.
– CINCO! – Ronald empurrou a porta com um chute, abrindo-a, e entrou rapidamente, certificando-se de que não havia ninguém ao lado dela. Acendeu a luz e, como o quarto de Susan, o dele também estava vazio. Novamente revisou todos os lugares que pôde, mas não tinha ninguém. Nem sinal de que alguém havia entrado ali.
Ronald revisou toda a casa mais uma vez para ter certeza e somente confirmou. Ele e sua filha eram as únicas pessoas presentes na casa. Se alguém entrou ali, saiu antes que Ronald tivesse chegado. O que ainda soava muito pouco provável.
Apesar de ainda incrédulo, deixou isso de lado por um momento. Sua filha estava no banheiro, ainda apavorada com o que vira. Não poupou tempo para ir até o banheiro, destrancar a porta e ver como ela estava. A garota se encontrava sentada no chão em posição fetal ainda com aquela expressão transbordando terror.
– Não tem ninguém aqui, filha. Já revistei a casa inteira. Ninguém vai te fazer mal. – Mesmo tentando aliviá-la, a garota permaneceu como estava.
Ronald pôs a mão nos bolsos em busca de seu celular no intuito de ligar para Larry e relatar o que acabara de acontecer, no entanto, lembrou-se que o deixara no bolso de seu sobretudo, que estava em cima do sofá.
– Filha, fique aí por um momento, eu já volto. – Disse, ainda aflito com a situação, e foi até a sala.
Ao chegar lá, tirou rapidamente o telefone do bolso do sobretudo e tentou ligar para Larry.
– Ronald? Estranho receber uma ligação sua agora. Tô pra sair do trabalho agora, é urgente?
– Mais do que imagina. Minha filha, a Susan… Acredito que ela tenha entrado em contato com o Apodítico… – Ao ouvir tais palavras, Larry ficou tão perplexo que demorou alguns segundos para responder.
– Não acredito… Tá de brincadeira!
– Gostaria de estar, meu amigo.
– E como ela tá? Como você ficou sabendo? O que exatamente aconteceu aí?
– Explicarei tudo mais tarde. Irei com ela aí de imediato. Fique aí por mais um tempo e me aguar…
Antes que Ronald pudesse terminar a frase, ouviu o som de algo caindo vindo de algum lugar da casa. De imediato, soltou o telefone e foi em direção ao banheiro. Ao chegar à cozinha, no entanto, paralisou.
A faca que havia deixado em cima da mesa agora se encontrava ao chão, ao lado do pescoço aberto e tingido de vermelho de Susan, caída e imóvel.
Toda a aflição e temor que Ronald sentira desde que chegara em casa não alcançava um décimo da intensidade do desespero que sentiu naquele momento. O terror tomou o seu rosto, e seu corpo começou a tremer. Após absorver o horror daquela cena, desesperadamente foi até o corpo caído da filha, na esperança de salvá-la de alguma forma.
– FILHA! ACORDE! POR FAVOR! FALE COMIGO! – Berrou enquanto tentava sacudi-la, no entanto, não houve resposta. Em um ato desesperado, Ronald tirou a própria camisa e a pressionou contra o pescoço rasgado da garota na tentativa de estancar o sangue, no entanto, o corte fora profundo demais, o sangue havia transbordado muito. Uma boa parte daquele chão estava tingida de vermelho. Ronald fez tudo que podia, mas a garota não deu sinal de vida.
Ainda desesperado, tentou ligar para uma ambulância enquanto continuava tentando reanimar a garota. As lágrimas já haviam preenchido seus olhos. Depois de um tempo, só o que lhe restou foi chorar e gritar enquanto abraçava o corpo sem vida da filha.
~~
Cerca de aproximadamente duas semanas se passaram desde o ocorrido. Ronald andava bem para baixo desde aquele dia. Estava voltando de mais um dia de trabalho quando ao sair do carro, deparou-se com sua vizinha, a velha Anastasia, igualmente voltando para casa. Acabaram se encarando por acidente de novo quando ela lhe lançou aquele olhar de desprezo com o qual ele já havia se habituado. Ronald não queria brigar nem nada, então quando esse tipo de coisa acontecia, ele sempre tentava ignorar, no entanto, dessa vez, devolveu o olhar da senhora com outro que transbordava ainda mais desprezo. A mulher apenas esboçou uma expressão de nojo e seguiu para sua casa. Ronald achava tudo aquilo um absurdo. Fazia cerca de dois meses que havia acabado de perder tanto a esposa quanto a filha, e aquela velha continuava tratando-o daquela forma, como se não tivesse um pingo de empatia.
Perdera o hábito de avisar de sua chegada ao entrar em casa, pois agora não havia ninguém para avisar. A casa estava mais vazia e depressiva do que nunca esteve. Largou as coisas no sofá como de costume e foi em direção ao banheiro. A lembrança do que acontecera ainda lhe causava um calafrio toda vez que passava por aquela cozinha. Chegando ao banheiro, estava frente ao espelho da pia lavando o rosto. Lembrou-se de que foi ali em que esteve com sua filha viva pela última vez. A cena começou a se repetir em sua mente: o grito dado pela garota quando levantou a cabeça daquela pia; as coisas bizarras que havia dito. Pensava Ronald se ela teria visto algo ali, porém, desconfortava-o pensar nessas coisas por muito tempo.
Naquela noite, a cena de sua mulher o encarando com aquele olhar perturbador em meio ao gramado morto tomou conta de seus sonhos, como já havia acontecido tantas vezes antes. Fazia tempo que o pobre Ronald não tinha uma noite tranquila de sono; tanto esses sonhos estranhos quanto o acontecimento recente o deixavam muito estressado, e para preocupá-lo ainda mais, o caso dos suicídios permanecia mergulhado em incógnitas.
Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa com a qual se deparou foi o CD ao lado do rádio, cujo conteúdo tentara tantas vezes terminar de escutar desde que sua esposa havia morrido e fracassara em todas. Teve vontade de tentar tocá-lo de novo, no entanto, sabia o quão inútil seria e evitou-o. Pensou que precisava fazer algo com aquele disco.
~~
Depois do trabalho naquele dia, Ronald foi ao parque municipal. Estava sentado em um banco com um copo de café em mãos, não fazendo mais que simplesmente observar o ambiente à sua volta. O lugar era coberto de gramas, havia algumas árvores e uma calçada linear de concreto em frente ao banco em que Ronald estava sentado.
– Realmente, esse lugar fica bem agradável ao fim da tarde. Não me surpreende que queira mudar o local do nosso encontro para cá hoje – Ouviu-se a voz de Rudy, que vinha se aproximando de Ronald, também com um copo de café nas mãos.
– Tenho vindo aqui mais vezes depois do trabalho. Não gosto de passar muito tempo sozinho naquela casa – Respondeu Ronald.
– Entendo. Eu faria o mesmo na sua situação.
Algumas crianças brincavam pelo gramado; pássaros vez ou outra pousavam e cantavam; a leve ventania soprava inofensivamente. Era um ambiente tranquilo e pacífico.
– É tão agradável que, quando venho aqui, sinto boa parte do meu stress diário indo embora. – Ronald suspirou.
– Se não me engano, você havia dito que sua esposa também gostava muito disso, né?
– Sim. Nunca fui de dar muito valor a essas pequenas coisas da vida. Tomar um café enquanto aprecia uma brisa e o canto dos pássaros, olhando essa paisagem verde transbordando vida e harmonia. Foi graças a ela que aprendi a apreciar tudo isso. O mundo é lindo. De fato, muito belo. Minha esposa quem me ensinou isso.
– Ela realmente parecia alguém que gostava de viver pelo pouco que conheci, apesar do trabalho duro que levava.
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