Os sinos do castelo badalavam sem parar.
Grossas camadas de gelo cobriam as saídas do castelo. Nobres e serviçais gritavam e corriam desesperadamente, a fim de salvar suas vidas dos cavaleiros de armadura negra, que matavam com veemência todos que viam pela frente.
Odilon tentava desbloquear o uma das saídas para liberar o caminho para um grupo de mulheres e crianças. Uma delas, que parecia ser a mais nova, estava grávida. Sentia muita dor. Um outra mulher, mais velha, alertou que isso eram contrações e que o bebe podia vir a qualquer momento. O príncipe se sentia ainda muito mais pressionado a abrir uma passagem, todavia os constantes gritos da gravida não o deixavam pensar direito.
De repente ouve-se mais gritos. Gritos de desespero. Um garoto, que observava Odilon de perto correu para junto da mãe e a agarrou pelas pernas. O príncipe se virou. Um dos soldados negros retirava de dentro do peito da jovem grávida sua espada coberta de sangue. A jovem, caída no chão havia parado de gritar… para sempre. Uma serpente roxa subiu pelo corpo do soldado e o estrangulou, dando-lhe o bote. O homem, sufocado caiu no chão. A cobra continuou seu curso sem atacar mais ninguém.
O jovem príncipe conseguiu abrir passagem. O loirinho, apelido dado por Odilon ao menino que de perto lhe observou, sorriu com seus dentes amarelados, como forma de agradecimento. Uma das mulheres passou chorando pela estreita brecha aberta no meio do gelo, era a mãe da jovem que morreu.
Continuo caminhando, olhando, procurando algo, ou alguém. Um barulho foi ouvido na sala do trono. Soldados passaram correndo e gritando:
– Protejam o rei! Protejam o rei!
Um segundo barulho foi ouvido, dessa vez mais forte, como um trovão. Odilon sacou sua espada e correu no mesmo sentido dos guardas. O salão estava cheio de soldados de armadura negra, porém não se sabia de qual reino pertenciam. Os soldados antífes não conseguiam perfurar as armaduras e quando conseguiam suas espadas se partiam ao tentar atravessar os corpos super resistentes dos soldado.
Novamente a serpente apareceu. Um por um dos soldados estrangeiros ela matou, entrando por suas armaduras e aplicando-lhes seu veneno letal. Os homens de armadura negra caiam e seus corpos se juntavam ao moribundos de Antífes, os mesmos corpos que eles haviam derramado o inocente sangue.
O rei não foi encontrado, sua irmã não foi encontrada, tão pouco sua filha. Estava sozinho e desnorteado. Dezenas de corpos pelo chão, uma sala cheia de sangue e destruição. O príncipe não entendia o motivo do terrível acontecimento. Sentou-se no trono de seu pai, mas não com autoridade, mas sim com desespero.
A serpente rastejou até o centro da sala e fitou o olhar ao que estava assentado no trono. Sua pequena cabeça balançava de um lado para o outro lentamente. Odilon não se movia. A serpente pulou em seu pescoço e o sufocou até morrer.
– Ahhhhhhhhhh! – Odilon levantou rapidamente.
– O que houve, rapaz? – Perguntou a feiticeira assustada. – Aconteceu alguma coisa.
– Tive outro sonho estranho. – Odilon respirava freneticamente.
– Outro? Já o terceiro só essa semana.
– E acha que eu não sei?
– O que sonhou desta vez?
– O dia em que os gigantes de gelo invadiram o castelo em Antífes. – O príncipe se levantou. – Só que estava estranho. Não foi igual ao dia, tinha uma cobra… uma serpente roxa. Ela matou os homens e depois… bem, depois me matou.
– Aonde vai?
– Preciso mijar. Bebi muito líquido antes de dormir.
– Não se afaste muito. Essa estrada é cheia de perigos.
– E qual não é?
O lugar estava muito escuro, pois a luz da noite era fraca. Corujas e outros animais faziam barulhos. O vento passeava pelas árvores delicadamente, fazendo seus galhos e folhas balançarem de pra um lado e para o outro, bem devagar.
Odilon urinava atrás de uma árvore quando viu a silhueta de alguém correr por trás dos arbustos. “Que droga!”, pensou.
– Polipedes, é você?
Ninguém respondeu. Outra vez a sombra passou rapidamente pelas suas costas.
– Yavel, se for você, pare agora mesmo!
Sua espada não estava consigo, o que fazia o príncipe ficar com mais medo ainda.
Começou a caminhar lentamente na direção dos arbustos, de onde escutava um som estranho vindo. Entrou por entre o mato e para sua surpresa deu de cara com uma serpente roxa. Assustado deu dois passos para trás.
– Não se assuste! – Falou a serpente, sem mexer a mandíbula, o que espantou ainda mais Odilon.
– Como é que você… – Foi interrompido.
– Eu sou uma pessoa normal, assim como você.
– Você é uma cobra.
– Eu sou uma víbora, seu idiota. Não sabe a diferença? Não te ensinaram isso na escola não?
– Odilon! Odilon! Onde você está?
– Estou aqui!
– É a voz de Polipedes?
– Fique quieta, sua cobra falante.
– É víbora! Eu sou uma víbora.
– Odilon, o que está fazendo… pelos deuses, isso é uma cobra. Mate-a!
– Víbora. – Odilon corrigiu Polipedes, enquanto olhava de maneira irônica para a víbora. – Ela fala!
A feiticeira deu uma longa e alta gargalhada.
– Ficou louco, Odilon? Cobras não falam.
– Já disse que sou uma víbora. – Tornou a repetir.
Polipedes se assustou.
– Viu. Eu não disse.
– Nossa, a única vez que eu vi alguém se transformar em cobra foi…
– Sou eu! – Disse a víbora, tentando sair da pedra na qual estava presa pela cauda.
– Nossa. Tire-a já dai Odilon. Com cuidado.
– Você conhece… conhece isso?
– É Mikae.
– Tire ela logo dai. Depressa.
– Não está ouvindo! Tire-me daqui!
Odilon suspendeu a pedra, facilitando assim a saída da tal víbora chamada Mikae.
– Estou há três dias lhe mandando recados pelos sonhos. Por que não me respondeu?
– Certamente por que eu não sabia.
– Devia ter enviado a mensagem para mim. Odilon não entende desse assunto.
O príncipe se sentiu inferiorizado.
– Não consegui acessar sua mente. Ela é quase impenetrável.
– Deve ser pelo fato dela ser cabeça dura.
– Não se trata desse fato e sim… – Mikae foi interrompida.
– Não precisa explicar nada. Odilon só tentou ser engraçado. Vamos voltar para perto da fogueira. Volte a forma humana para que eu possa te dar um abraço.
– Forma humana?
– Claro! Ou achou mesmo que animais falam? – Mikae deu uma risadinha.
Polipedes sorriu com o canto da boca. Odilon, mais uma vez sentiu o ar zombeteiro da víbora falante.
Odilon estava prestes a colocar mais galhos secos na pequena fogueira, quando Polipedes estendeu a mão fazendo com que o fogo se erguesse sozinho. O príncipe tirou rapidamente suas mãos de perto do fogo sacudindo-as, devido a lambida que umas das chamas deu nelas.
– Diga, o que estava fazendo na floresta? – Odilon levou seu olhar para a jovem moça, que ajeitava seus cabelos negros com mexas rochas cortado na altura dos ombros. – Anda mais a noite.
– Como você está viva? – A feiticeira falou por cima de Odilon. – Muitos acham que você está morta.
– No momento, devem continuar assim. – Mikae deu uma tragada na água do odre. – Foi muito difícil continuar viva depois do que aconteceu no refúgio. – Olhou para o vazio, parecia estar vivendo novamente os horrores do massacre do dia em que a deram como morta.
– O que houve? – Polipedes compartilhou a cumbuca cheia de pedaços de lebre assada.
– Alguém entregou o paradeiro de nosso esconderijo. Eles foram totalmente impiedosos, matando crianças e mulheres indefesas. Tentamos nos defender, mas eles eram em maior número, já nós… nossos alunos ainda não estavam preparados para tais horrores.
– E como você sobreviveu? – Odilon lambia a gordura de seus dedos.
– Tive que me passar por morta. Bebi uma poção que faz adormecer, a tal ponto que parece estar sem vida. Depois que eu acordei, dentro de uma vala, transformei-me em víbora, para sair sem ser percebida.
– E o que te trouxe até aqui? – O príncipe ainda esperava tal resposta.
– Minha irmã.
– Fiorella está viva? – Disse Polipedes.
– Acredito que sim. Chequei seus rastros, eles me trouxeram até aqui, mas depois cessou. Passe para cá essa mais um pedaço, por favor. Outro dia estava investigando mais um pouco, foi quando os caçadores apareceram. Não tive como me esconder então me transformei no que todos já viram. Um dos caçadores me viu de longe, todavia não quis me matar; não sabia que eu era uma bruxa, achou que fosse um animal qualquer. Ele parecia ter medo de bichos peçonhentos, então pôs aquela maldita pedra na minha cauda. Por acaso tem outra coisa para beber a não ser água?
– Não, não temos. – Respondeu Odilon secamente. – Se quer encontrar sua irmã… – O príncipe fez uma pausa. – por que não fez com ela o mesmo que fez comigo?
– Eu tentei, mas sem êxito. Acredito que ela tenha bloqueado o acesso a sua mente. Provavelmente esta lamentando pela minha falsa morte.
– É, realmente tudo isso é muito trágico. Uma pena não podermos te ajudar. Já temos nossos próprios problemas.
– Temos sim. Não ligue para Odilon.
– É, não ligue para mim. Afinal, eu só tive minha filha sequestrada.
– Sei que é duro para você tal fato, Odilon, mas perceba que se ajudarmos Mikaela a achar sua irmã poderemos ter o apoio necessário que precisamos para recuperar sua filha. Vocês vão querer mais lebre?
– Eu quero mais um pedaço. – Mikaela ergueu a mão até a vasilha que estava junto de Polipedes. – Me ajudem e eu ajudarei vocês. Eu e Fiorella . Eu garanto.
Odilon deitou-se, sem dar resposta alguma. Estava muito preocupado com sua filha para se dar ao luxo de se meter nos problemas alheio. Mikaela permaneceu sentado junto ao fogo. Admirava as chamas dançando sobre a brasa ardente.
– Se não nos ajudar. – Murmurou Odilon. – Vou garantir que você fique bem morta dessa vez.
A jovem arregalou os olhos. Polipedes a olhou com a mesma expressão, mas ambas compreendiam o sofrimento do príncipe, por isso ninguém foi capaz de retrucar sua fala ignorante.
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