Cerca de duas vezes por semana, após a labuta diária, três policiais reúnem-se em uma cafeteria da cidade, para tomar café e jogar conversa fora sobre suas vidas pacatas. As brisas tranquilas do crepúsculo proporcionavam um ambiente agradável ao encontro daquele dia. Com exceção de uma ou outra pessoa que seguia caminho, não se via mais ninguém nos arredores.
– Parece que alguém deixou um caso mal resolvido hoje – gracejou Larry, o mais jovem do trio, ao observar o amigo sentado à sua frente olhar fixamente, como que pensativo, para um copo vazio.
– Ah, deixe disso! Não tenho tantos anos de trabalho à toa – respondeu amigavelmente o colega, que voltou à realidade com o comentário de Larry. Ronald, 37 anos de idade, 9 a mais que Larry. 1,81m de altura. Nem tão magro, nem tão forte. Cabelos negros e rosto sem detalhes chamativos. Larry, por outro lado, era loiro, magro e tinha 1,85m de altura.
– Ah! ah! Não seja por isso. Mesmo os mais experientes podem dar deslizes às vezes. Falo por experiência própria – Acrescentou, em tom risonho, o último do trio, que estava ao lado de Larry. Rudy, 56 anos. Porte físico não muito diferente de Ronald. 1,79m de altura. Cabelos grisalhos com entradas de calvície. Rosto naturalmente enrugado e um bigode da mesma cor do cabelo.
– De qualquer forma, o que você estava pensando enquanto viajava na maionese aí? – indagou Larry a Ronald.
– Nada demais. Só estava refletindo se deveria pegar outro copo de café.
– Ora, e porque não? Você sempre toma dois copos quando estamos aqui! – exclamou Larry, curioso.
– Nos últimos tempos, o meu dinheiro tem ido embora rapidamente, por alguma razão.
– Ah, acho que é porque você anda exagerando bastante na bebida desde daquele dia.
– Larry, não é bom mencionar isso assim tão casualmente... – comentou Rudy em tom baixo e grave.
– Ah, perdão! Não foi minha intenção...
– Tá tudo bem, Rudy. Acho que estou um pouco melhor sobre isso.
– Tem certeza? Foi tão recente... Faz o quê? Um mês?
– Umas três semanas.
– Parando pra pensar, você recebeu um pouco depois disso, né? Então não tem como ter sido a bebida. Ou você bebeu tanto que acabou ficando em débito com a loja? – brincou Larry.
– Claro que não. Acredito que não aguentaria tudo isso.
– Talvez seja a inflação; as coisas têm ficado cada vez mais caras. Ah, como era bom no meu tempo! Fico assustado quando lembro os preços das coisas naquela época e os comparo com os de agora. – contou Rudy antes de sorver o café.
A conversa seguiu descontraidamente por alguns minutos, até que Ronald parou para observar a rua, que estava deserta e fria.
– Tá viajando mais que o normal hoje, viu, Ronald? – Larry cortou o pequeno momento de silêncio.
– Gosto de observar o ambiente à minha volta. Foi um hábito que adquiri com ela. – Ronald suspirou e então prosseguiu. – Hoje tá bem mais calmo que o normal. Bem agradável, não?
– Olhando assim, parece bastante agradável; mas, se levar em conta as coisas que têm acontecido nessa cidade, parece-me mais como se ela estivesse de luto. – Rudy respondeu.
– Confesso que não estou tão por dentro assim dos outros casos; só fiquei sabendo parcialmente de outros suicídios. – declarou Ronald.
– Ah, tiveram muitos! Pelo menos 19 nos últimos 70 dias, incluindo o da sua esposa.
– Meu Deus... – Ronald disse perplexo.
– Eu não sei de muitos detalhes; o Larry foi quem ficou responsável pela maioria deles.
– Sim, e tem muita coisa esquisita nesses casos! Esqueci de contar para vocês. – Após tais palavras, Larry levantou-se sutilmente para examinar se havia alguém por perto que pudesse ouvir a conversa. No entanto, as duas únicas pessoas, além deles, sentavam-se em mesas distantes. Ao percebê-lo, Larry sentou-se e prosseguiu.
– De acordo com investigações recentes, há uma probabilidade alta de que alguém esteja envolvido em boa parte desses suicídios. Falo de um possível induzimento ou,na pior das hipóteses, assassinatos em série. – Larry falou quase sussurrando, com uma seriedade estranha ao seu humor. Os olhares antes plácidos de Ronald e Rudy adquiriram, de súbito, expressões de curiosidade e espanto.
– Tá brincando...
– Eu gostaria de estar, Ronald. Contudo, não está totalmente certo; ainda vou providenciar investigações mais aprofundadas acerca dos casos, que, além de muitos, são complexíssimos.
– Mas quais são as evidências até agora? – indagou Rudy.
– Bem, vamos por partes. As anotações que recebi não são tão precisas; mas, pelo que pude entender, a maioria dos parentes e amigos que interrogamos até agora relatou padrões de comportamento anormais por parte das vítimas. Alguns no dia do ocorrido, outros na véspera. Podem não parecer nada demais comigo falando assim, mas eram bizarros... – demonstrando tensão. – Bom, eu não me lembro bem de todos os relatos. Como uma pessoa não pode estar mentalmente bem antes de tomar uma decisão dessas, acredito que expressar comportamentos anormais seja esperado; por isso, fica difícil saber quantas vítimas podemos relacionar a essa hipótese. De qualquer forma, conseguimos relacionar pelo menos 12 delas.
– 12 vítimas de 19... Isso é realmente atroz. – Rudy expressa indignação.
– E que tipos de comportamentos foram esses? – questiona Ronald
– Do pouco que me lembro, era como se elas estivessem enlouquecidas e assustadas com algo. Notamos algumas semelhanças em coisas ditas por diferentes vítimas.
– Tipo quais? – ambos perguntaram.
– De cabeça eu só consigo me lembrar de dois casos, os mais chamativos que li. Um deles foi de um garoto que dizia coisas como “Eu o vi... Ele vai me pegar” e “Ele sabe a verdade”. Se não me engano, ele dizia ter visto o fim do mundo ou algo assim.
– O fim do mundo... ? – indagou Ronald.
– Exato. O outro foi o de um homem na faixa dos 40 anos. Sua mulher relatou que ele ficava repetindo o que parecia ser um poema estranho e incompreensível. Várias coisas que ele mencionou nesse poema também foram mencionadas por outras vítimas, inclusive pelo garoto.
– Como era esse poema? – Rudy perguntou.
– Eu não me lembro ao certo, mas tinha algo como “Um mundo de mentiras” , “O cenário do fim” e “Não escondam! Ele sabe da verdade” .
– O cenário do fim... – disse Ronald, pensativo.
– Exatamente! bem semelhante ao que o garoto disse. Acredito que estejam se referindo à mesma coisa. Se vocês já acharam tudo isso muito estranho, saibam que ainda não contei a maior evidência de todas.
– Qual seria... ?
– Dentre todos os 12 casos relacionados a esta hipótese, 8 mencionaram um nome que, pelo contexto relatado, acreditamos se tratar de uma figura. Provavelmente o responsável por isso. – ao dizer isso, Larry levanta-se, mais uma vez, para se certificar de que eles não estão sendo ouvidos, e em seguida se senta de novo.
– Que figura é essa? – questionou Rudy, com muita curiosidade.
– Chamaram-no de “Apodítico”. – sussurrou Larry.
– Apodítico... Não é uma palavra muito comum – comentou Ronald, em tom tão baixo quanto.
– Esse nome, inclusive, apareceu no poema que o quarentão recitou.
– Um serial killer nessa cidade... Era só o que faltava! – resmungou Rudy.
– Ainda não sabemos se se trata mesmo de assassinatos. Na verdade, pelo que vimos, é muito improvável que assim seja. Todos os casos que investigamos careceram de qualquer sinal de homicídio. O máximo que podemos dizer até então é que houve induzimento ao suicídio por parte dessa figura conhecida como Apodítico. Pode ter havido ameaças e chantagens.
– Seja o que for, isso é muito macabro... – comentou Rudy, com espanto no rosto.
– Será que o caso da Jane envolveu essa figura... – Ronald não pôde deixar de exprimir tal preocupação.
– Há uma chance. Você disse que sua esposa estava agindo de modo estranho antes do ocorrido, certo? Quanto tempo antes?
– Mais ou menos uma semana. Mas ela não disse aquelas coisas estranhas e, além disso, não estava fora de si, tal como você descreveu as vítimas. Ela só estava aflita, tensa, preocupada... claramente perturbada com alguma coisa. Tentava agir como se estivesse tudo bem. Eu tentava perguntar, pedia para que ela me contasse, mas ela insistiu o máximo que pôde para não contar. Eu imaginei que fosse devido a ela ser muito exigida no trabalho e, por conta disso, passar pouquíssimo tempo em casa; às vezes nem sequer vinha para casa. Ela costumava ficar em algum lugar próximo da empresa mesmo nos dias de folga, para realizar mais facilmente os compromissos dos dias seguintes. Era bem difícil e eu sentia muito a falta dela... Na véspera do acontecimento, eu, que estava de folga e havia saído para relaxar um pouco, voltei para casa um pouco antes de ela chegar do trabalho. Ela enfim chegou, e incomparavelmente mais tensa que nos dias anteriores. Nem consigo descrever... Ela mal falou comigo e com a Susan... Tentei fazer algumas perguntas sobre o que lhe acontecia, às quais ela respondeu não ser nada de mais; notei que seus olhos e rostos estavam avermelhados, como se ela tivesse acabado de chorar... – Ronald pausou um pouco e logo prosseguiu. – O olhar dela incomodou-me... O ato aconteceu enquanto eu dormia. Ela saiu de casa e... bem, você já sabe o resto.
– É. As semelhanças com as supostas vítimas do Apodítico não são tão fortes. Fora que uma semana é um recorde e tanto. As vítimas desse caso, como eu disse, mataram-se no mesmo ou, no máximo, no seguinte dia em que começaram a agir dessa forma. É difícil dizer, ao menos por ora.
– Entendo... – Ronald disse com um ar de preocupação.
– De qualquer forma, ainda há muita coisa incerta sobre esses casos; é certo que estão conectados de alguma forma, mas está tudo muito misterioso ainda. Precisamos pesquisar melhor. Se vocês não se importarem e não estiverem cheios, o que acham de me dar uma mãozinha?
– Bem, antes tenho que dar uma revisada na minha lista e pedir autorização aos superiores, mas farei o possível.
– Digo o mesmo. Quanto mais cedo pegarmos o culpado, melhor! – declarou Rudy.
~~
A noite estava em seu ápice quando Ronald voltou para casa.
– Estou de volta! – exclamou enquanto entrava na sala de estar.
A sala estava escura e vazia. Era um cômodo retangular simples com alguns móveis e objetos espalhados metodicamente, entre os quais sofá, televisão, telefone residencial, cômoda, etc. No lado oposto ao da porta de entrada, à direita, havia uma entrada para a cozinha, na qual Ronald notou a presença de luz. Ao entrar na sala, Ronald largou no sofá o sobretudo e alguns materiais que usava no trabalho e seguiu para a cozinha.
Entrou na cozinha e viu sua filha de pijama. Ela era magra e tinha cabelos negros que quase se extendiam até os ombros. Estava comendo torradas com leite e parecia estar bastante desanimada, de modo que não expressou mudanças significativas ao ver Ronald.
– Oi, pai. – disse a garota, cabisbaixa.
– Como vai, Su? Está melhor hoje? – perguntou Ronald, com um sorriso agradável, enquanto ia até o armário da cozinha para pegar um copo.
– Mais ou menos. – A filha respondeu da mesma maneira, antes de dar mais uma mordida na torrada.
Dado o que aconteceu com a esposa de Ronald, era natural que a filha estivesse deprimida. O choque da tragédia afetou ambos; consequentemente, um clima pesado tomava conta da casa. Desta forma, eles não tiveram muitas interações desde o ocorrido, pois um não tinha muita energia para conversar com o outro. A filha de Ronald, no entanto, parecia ainda mais desanimada que ele. Como pai, descontentava-o vê-la assim, mas ele não sabia o que dizer; pensou em mencionar o assunto como pretexto para desejar-lhe melhoras, embora isso pudesse piorar a situação, pois a faria lembrar-se do ocorrido; pensou em dar-lhe alguma coisa, talvez dinheiro, já que ela não estava recebendo a mesada inteira, devido aos ocorridos recentes. O pobre homem, entretanto, lembrou-se de sua escassez financeira. Após tomar um copo d’água, Ronald tentou falar alguma coisa sem pensar muito.
– Sei que está sendo difícil, mas gostaria que tentasse não pensar muito no ocorrido. Ela não iria querer te ver assim... Acho que espairecer um pouco as ideias pode ser bom, sabe? Eu queria poder fazer alguma coisa, te dar um pouco mais de dinheiro para você se divertir, mas as minhas condições não andam muito boas ultimamente...
As palavras desajeitadas do pai pareceram ter algum efeito na filha, mas não positivo. Ronald notou-lhe uma leve tremedeira. Ela olhava para o chão e continuava muda.
“Seu idiota!” pensou Ronald.
– Desculpe... Não devia ter dito isso... É que estou preocupado com você, filha. Não quero te ver desanimada assim. – em seguida, o pai foi em direção à filha e cobriu-a com um abraço caloroso. – Tá tudo bem; toda tristeza é passageira. – complementou com um sorriso gentil no rosto. Algumas lágrimas começaram a sair dos olhos da garota, que ainda, um pouco trêmula, retribuiu o abraço do pai.
– Desculpa, pai... – Choramingou.
– Tá tudo bem, querida.
O abraço durou por mais alguns segundos, até que Ronald afastou-se.
– Gostaria de assistir a um filme hoje, com o papai? Qualquer coisa serve; é só para tentar animar um pouco.
– Não... Tá tudo bem, de verdade... Eu só preciso de um tempo sozinha... – A garota respondeu ainda tensa.
– Tudo bem, então... – Ronald, sendo gentil, passou a mão na cabeça dela. – Papai te ama, tá bom?
A filha ficou sem reação; depois, tentou esboçar um sorriso não muito convincente e respondeu: “Também te amo”.
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