Acordou deitada no sofá de uma sala. Começou a reparar ao seu redor: mobília de madeira escura e modelos anatômicos para todos os lados, uma maca do outro lado da sala onde estava o homem que tentou matar. Bruce, deitado completamente apagado com a parte superior do seu corpo enfaixada e alguns hematomas. Estava completamente indefeso, porém a raiva que carregava se esvaiu. Ainda estava irritada e confusa, mas não queria matar ninguém, nunca quis. Só que estava tão cheia de ódio que se perdeu completamente. Sentia-se tão frustrada, queria chorar, gritar e destruir aquele lugar inteiro. O que estava fazendo quase matou Bruce por estar cega de ódio, o garoto estava certo, aquilo pioraria tudo. Da forma como tinha tratado Carla só pra satisfazer seu egoísmo lhe restou só à culpa. “Thomas teria me impedido de fazer tudo isso, Carla não conseguiu”, pensou e sentiu mais culpada, estava fazendo de novo, jogando a responsabilidade e a culpa em Carla. Como podia ser tão egoísta? “Não é culpa dela, é minha culpa. Eu fui irracional, cruel e sádica. Eu abusei da pessoa que amo. Como vou encará-la depois de tudo isso?”. Sentia este sentimento ruim crescer em seu peito e inchar como se fosse explodir feito um balão. Enfiou a cara na almofada do sofá, chorou de raiva e deu gritos abafados.
-Você vai ficar bem! –A voz de Bruce a surpreendeu. –Perder alguém é difícil. A vida é assim, todo dia perdemos algo, mas vem o tempo e traz coisas novas, gente nova, experiências novas, lugares novos. Não vai preencher o vazio e não vai apagar o que a pessoa representou só que te ajuda a continuar e entender que sua vida não acabou pelo que aconteceu. Você vai ter seu próprio tempo para melhorar e se precisar de ajuda estou aqui.
Ingrid parou de chorar, enxugou as lágrimas no travesseiro e tentou se estabilizar. Não queria ter acordado Bruce, entretanto não conseguiu conter seus sentimentos. Prestou atenção no que disse e se sentiu mais calma. Precisava de alguém pra conversar. Levantou o rosto da almofada
-É por isso que você está assim? Foi isso que te fez deixar a ordem?
-Sim. Eu perdi minha esposa e não tinha mais forças para estar lá. –Ele tinha um olhar pacífico em seu rosto e não parecia sentir dor ao lembrar-se do que falou. Não parecia mais com o homem que tinha acabado de enfrentar. -Foi uma missão difícil, ela se feriu gravemente, não havia ninguém no grupo vivo que pudesse curá-la.
-Não sabia que era casado. Essa informação não foi repassada para ordem, tudo que falaram é que por ser o único sobrevivente de uma missão você abandonou o manto e sumiu pelo mundo. -Nem Thomas disse algo sobre o assunto, ele respeitou a escolha de Bruce. Saber o que realmente aconteceu à fez sentir mais culpada. Disse coisas cruéis enquanto o agredia, coisas que não eram verdade. –Quem era sua esposa?
-Nora Andrade. Minha esposa e eu éramos chave fundamental de nossa equipe. A ordem não permite que pessoas íntimas fiquem juntas na mesma equipe para evitar situações que possam prejudicar os resultados. Não estavam errados, meu caso é uma das provas disso. O casamento foi em segredo e só amigos próximos sabiam, seu irmão foi um deles. A mesma coisa com você e a Carla, não é? O que vocês têm é segredo para não serem afastadas.
-Sim, Carla e eu mantemos o que temos em segredo para poder ficar na mesma equipe. Ultimamente não tenho merecido ela. – Um pequeno aperto em seu coração a fez quase desmoronar novamente. -Eu conheci sua esposa, ela era incrível. Meu irmão ficou muito abalado quando ela morreu. Nós fomos ao funeral. Depois, ele ficou sabendo que você tinha partido e isso não ajudou muito, mas ele entendia o que estava acontecendo, já eu não. Você não estava no funeral dela. O que aconteceu?
-Ela não queria ser enterrada lá, dizia que quando morrêssemos que nos colocassem juntos em um lugar bonito para poder descansar tranquilos. Achava o cemitério dos cruzados muito melancólico e trágico. Tínhamos muitas pessoas que perdemos enterradas ali, não era um lugar com boas lembranças. Contudo, como o casamento foi em segredo eu não podia requerer o corpo e ela assim como eu era órfã, não tinha a quem eu pedir ajuda. Não quis ver a cena. Sai por aí vagando, procurando onde enterrar nossas alianças como símbolo. Depois me lembrei deste lugar, ela gostava muito dessa pequena vila a achava charmosa, queria morar aqui se nos aposentássemos. Ela era bem otimista, nunca vi muitos cruzados chegarem à aposentadoria, pelo menos não inteiros.
-Você passou por muita coisa, eu fui egoísta nas minhas ações. –Levantou-se do sofá e manteve a cabeça baixa em sinal de respeito. –Bruce eu... Eu falhei com meu irmão e falhei com a Carla e quase te matei por isso...
- Eu já entendi, todo mundo faz escolhas ruins, mas o importante é que não te deixaram ir até o fim e que você entendeu que estava errada. Ainda vai passar por muita coisa antes de ficar realmente bem, garota. Eu sei como é difícil para você se humilhar, sei como sua família te tratou. Não precisa falar mais nada, eu já entendi. Eu te perdoo. Sem ressentimentos.
Quando levantou o rosto e olhou para Bruce não parecia nem um pouco com o homem quebrado que viu antes em batalha, mas também já não era o cruzado prodígio que foi um dia. Era alguém novo, que passava sabedoria e um ar calmo. Aquelas palavras deixaram seu coração leve, contudo ainda tinha que resolver as coisas com Carla.
-Obrigado, significa muito para mim. Eu vou fazer o meu melhor para superar o que aconteceu. Eu sei que está ferido, mas podemos ir até onde estão Carla e o garoto? Eu preciso me desculpar com eles, pelo menos tentar.
Quase meio-dia, céu ensolarado e com nuvens gorduchas flutuando gerando sombras frescas, ruas movimentadas com pessoas indo de um lado para o outro pela vila. Enquanto passam, as pessoas a olham com rancor e cochicham sobre o que aconteceu na outra noite. Ingrid sentiu-se desconfortável, mas sabia que tinham motivos para guardar rancor contra ela. Gente de todo tipo cumprimentou Bruce, o chamando por Chaminé, perguntando se estava bem e se não haveria problemas por ela estar ao seu lado. Para todos ele deu a mesma resposta: que estava tudo bem, que estavam seguros e que a situação já tinha se resolvido.
-Parecem ter grande afeto por você. Sabem quem você é? Todos seus feitos?
-Eles conhecem quem sou, não quem era. Aqui sou aquele que desde que chegou tem ajudado a resolver seus problemas, o que pra eles é o suficiente. Não me veem como um cruzado, não um protetor distante e incansável, mas alguém que faz parte de sua comunidade que convive de suas dores e alegrias, alguém com quem podem contar sempre. Um amigo.
-Carla ia gostar disso. É o que ela sempre quis se tornar como membro da ordem. Uma heroína do povo que pode protegê-los e inspirá-los.
-Não somos heróis. Heróis nunca falham, não sentem medo e não precisam ser protegidos. Heróis são perfeitos! As pessoas aqui sabem que Ada e eu não somos isso. Por isso queriam intervir quando vocês o atacaram. Eles são nossos amigos, mesmo vocês sendo mais forte que eles fariam o possível para ajudá-lo.
Ao chegar à taberna encontraram o garoto e Carla conversando. Ela parecia relaxada, havia um tempo que Ingrid não a via assim. Esboçando um pequeno sorriso e rindo junto do pivete. Ele também parecia estar bem, só tinha alguns curativos pelo corpo e rosto e o braço atado para ficar imóvel. Quando se aproximou pode ouvir o final da conversa.
-Ada, ela estaria orgulhosa de você. Eu nunca acreditei no que foi dito e acho que seu pai também não, não foi sua culpa. Você deveria ir falar com ele e resolver tudo isso. É o certo a se fazer. Arthur deve estar preocupado.
-Eu sei que ele entenderia a situação. Só que eu não tenho coragem de olhar no rosto dele depois do que aconteceu. Em parte, a culpa é minha, mas não vou ficar me martirizando e me sentindo impotente. Preciso seguir em frente. Crescer para que não aconteça novamente. Decidi assumir essa responsabilidade do meu jeito. Acho que foi isso que ela quis me dizer.
Aproximou-se dos dois calmamente. Manteve a cabeça baixa, pois não acreditava ter direito de olhar Carla nos olhos depois de tudo que fez. Notou que Bruce mandou um sinal para que eles as deixassem a sós. Quando saíram Carla se aproximou e parou em sua frente sem dizer nada. Ingrid sentia-se assustada e inútil. Não sabia se ia conseguir resolver a situação, tinha medo de que ela a odiasse pelo resto de sua vida perdendo quem mais ama.
-Eu estraguei tudo, fui uma idiota. –Aquela mesma ansiedade que encheu seu peito no consultório voltou, sentia como se o peito fosse estourar. Só queria abraçar Carla e pedir que nunca a abandonasse. Contudo, sabia que não podia fazer isso e que não merecia isso. Precisava fazer o certo e esperar que ela tomasse a decisão. Não podia mais impedir Carla de ter escolhas. -Nem posso dizer que foi de agora. Desde que nos conhecemos nunca te tratei como você merecia.
-Pelo menos você conseguiu reconhecer isso. Se for tentar fazer as pazes comigo e com si me olhe nos olhos enquanto o faz. Encare essa situação, não seja covarde ou egoísta. –Sua voz foi autoritária e fria, Carla nunca falou com ela dessa maneira. –Se quer me tratar como eu mereço, tome responsabilidade por suas escolhas!
Levantou o rosto e olhou Carla nos olhos. Ambas estavam prestes a desabar. Ingrid já mal conseguia falar. Sentia o choro preso na garganta, o coração apertar e os olhos se encherem de lagrimas. Olhando nos olhos de Carla, notou que estavam avermelhados e marejados. Não era fácil para nenhuma delas fazer aquilo, porém necessário. Sabia que o que fazia com Carla não era saudável.
-Me perdoe. Eu fui horrível sem você nunca ter merecido isso. Você me protegeu, me amou, cuidou de mim, sempre viu meu melhor e eu te humilhei por tanto tempo. Me sentia culpada toda vez que fazia, mas me trazia satisfação e eu continuava nesse ciclo. –As lagrimas começaram a escorrer por seu rosto, mas se esforçou para terminar de falar. Enquanto exteriorizava o que tinha feito à culpa aumentou e fazendo seu coração pesar cada vez mais. -Te tratei da mesma forma que fui tratada anos e anos pela minha família. Eu me tornei igual a eles. Eu torturei a pessoa que amo fui cruel, covarde e egoísta. Quis te fazer insegura. Eu machuquei pessoas sem motivos e me tornei um monstro, o que sempre disseram que sou. Me tornei o que queriam fazer de mim.
-Você pode criar quantas desculpas quiser, mas se não entender o peso de suas ações e quantas pessoas feriu não vai adiantar de nada. Eu não quero desculpas só para você não me perder. Quero que melhore! Torne-se a pessoa que você tem potencial para ser, não aquela que queriam fazer de você.
Carla apertou os punhos, seus músculos ficaram rígidos, não foi difícil notar toda raiva que emanava dela. Estava decepcionada e frustrada com Ingrid. Seus poderem começaram a se manifestar. Ingrid sentiu o corpo pesar. Assim pode fisicamente sentir o rancor e mágoa de Carla.
-Eu sei. Te trai e você não precisa confiar no que eu disse. Falhei e vou perder você por causa disso. Mas está tudo bem, eu te amo. Não que isso seja suficiente, o que te dou não é bom e nem mesmo pode ser chamado de amor. Eu vou entender a escolha que fizer. Só que eu vou me tornar algo melhor. Não porque as pessoas querem, mas porque eu quero e preciso. Vou me tornar aquilo que você e meu irão sempre acreditaram que eu poderia ser e um dia vão poder se orgulhar de mim
-Você não me perdeu. Me magoou muito, mas não quer dizer que me perdeu. Eu quero tirar um tempo para viajar. Precisamos de espaço para repensar quem somos e o que queremos. – Ela se aproximou e deu um abraço em Ingrid, fazendo sentir-se segura, no entanto melancólica, sabia o que o abraço significava. Um adeus, porém, um adeus necessário.
–Fique aqui, este lugar pode te fazer bem. Ada e Bruce são boas pessoas. Podem te ajudar de maneira que eu não posso, eles passaram por coisas que não passei. Voltarei quando sentir que é a hora certa. Espero que até lá você se torne a pessoa que quer.
O abraço foi longo. Compartilharam um beijo seguido por um “eu te amo”. Ingrid chorou por ter que se despedir, nunca haviam se afastado por mais de poucos dias. Contudo, entendia que aquilo era o melhor. Precisava de tempo para se tornar o que Carla merece aquilo que deseja alcançar. Não o monstro que sua família sempre disse que era, mas sua melhor versão. A versão que seu irmão e Carla acreditam que pode ser.
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