O último dia foi uma agonia incessante. Ingrid disse que estavam dispensadas de seus serviços para irem a uma missão, contudo não deu mais nenhum detalhe, quando Carla tentava saber mais sobre a situação ela a reprimia dizendo que não precisava saber de mais nada e que se queria ajudar deveria se manter quieta e apenas obedecer, a acusou de insubordinação e de não confiar no seu comando. Fez o máximo para ignorar aquilo, já havia deixado de lado tanta coisa, sempre foi uma relação estranha e difícil. Desde que se conheceram ela passava por essas situações, a morte do irmão foi só o motivo mais recente para sofrer o desdém de Ingrid, entretanto seguia em frente. Via algo além daquela faceta cruel e egoísta, era capaz de ver alguém ferido, que merecia amor, alguém capaz de grandes coisas, mas que se mantinha atada ao que a família havia feito dela.
Desde que saíram da catedral Carla percebia uma sede de sangue em Ingrid, quando aceitou ir à missão foi porque sentiu que era seu dever protegê-la do caminho que ia trilhar. Embarcou na jornada para trindade com objetivo de mudar as intenções turvas de sua superiora. A viagem de trem parecia não acabar, não sabia como conectar-se com Ingrid e precisava ajuda-la até chegar ao destino final.
Voltando do Vagão restaurante para o quarto, carregando dois copos de café pelo corredor que atravessa os vagões do expresso foi cumprimentada pela população. Recebeu agradecimentos pelos serviços dos adultos, já as crianças ficavam agitadas, pediam para seus pais olharem a cruzada passando ou ficavam acenando para ela tentando ser vistas. A cena inteira recarregou um pouco o espírito de Carla e a fez sentir melhor, estava precisando daquela energia, sempre foi seu sonho se unir aos cruzados e na posição que estava tinha o benefício de poder inspirar e passar segurança as pessoas. Contudo sentiu que a missão em que está não se trata disso.
Entrou no quarto e sentou-se ao pé da cama de Ingrid que deitada encara o teto quieta com olhar severo e sem qualquer reação a presença de Carla.
-Eu lhe trouxe café. O cheiro está ótimo, me lembra do que tomamos em Santa Lucia, nunca me esqueço de como você achou o lugar só pelo seu olfato! –Havia melancolia e saudosismo em sua voz. Carla estendeu o copo para Ingrid. –Aquela missão foi difícil né? Mas as famílias ficaram tão felizes quando trouxemos as crianças de volta, você lidou tão bem com elas, fazendo elas se sentirem seguras enquanto eu lutei com a bruxa.
-Eu não quero café! –Disse e virou para o lado dando as costas para Carla. O tom de voz ficou ríspido e tomado por rancor. –Pare de ficar se lembrando de coisas idiotas como essa. Você achou aquilo engraçado? Acha que eu fiquei parecendo um cachorro de rua atrás de comida? –Não olhou em nenhum momento para o rosto de Carla, suas palavras foram dolorosas de ouvir. A voz tomou um tom de sermão. –Nem todas as missões vão ser cheias de momentos para você ficar se achando a heroína e massagear seu ego. Ninguém é herói nesse mundo, muito menos você! Só existem aqueles que estão do nosso lado e os que não estão! É disso que essa missão se trata, estamos caçando um desertor.
-As coisas não têm sido fáceis, eu vou te ajudar a capturar o desertor, mas você precisa tirar o peso dos seus ombros e falar sobre o que está sentindo. Sente-se comigo, tome o café está do jeito que você gosta! Não fique guardando as dores pra você isso vai te apodrecer por dentro. –Carla tocou o ombro de Ingrid e estendeu o copo de café mais uma vez, falou de maneira doce e sutil tentando acalmar e acalentá-la.
Não quero seu maldito café! Nem mesmo a porcaria da sua ajuda! –Disse enquanto balançou os ombros para se livrar do toque e com o braço empurrou a oferta de Carla para longe de si. –Você não é melhor do que eu! Olha para você, se esforçando só pra ter minha atenção, implorando pelo meu reconhecimento. – Um claro sentimento de desprezo tomou conta da frase. –Eu sei pelo que estou passando, não preciso da sua gentileza e condescendência. Eu só quero ir acabar com essa missão e seguir com a minha vida. Eu fui clara? Deixe-me ficar sozinha. Isso é uma ordem como sua superiora!
-Está bem senhora, chame se minha presença for necessária. –Sua voz quase se engasgou ao falar. Queimou-se devido ao café quente que caiu sobre sua mão, seus olhos ficaram marejados e sentia o choro entalar na garganta enquanto forçou para engoli-lo e não desabar no quarto.
Saiu do quarto da maneira mais calma possível e foi em direção ao banheiro, entrou e se trancou lá dentro, assim girou a chave e ouviu o barulho da tranca as pernas cederam e foi ao chão assim como as lagrimas que escorreram pelo rosto. Como uma pessoa que ama tanto pode ser tão cruel, a fazer sentir-se tão pequena e insignificante. Questionava-se, o que fazia para merecer aquilo, seria sua culpa passar por essas situações. Tinha intenções tão boas, mas só era capaz de piorar as coisas, sentia seu peito dilacerar em dor como se o coração fosse rasgado pelas garras de um animal. Mesmo em meio a tanta dor e sofrimento era incapaz de sentir ódio ou rancor contra Ingrid, toda culpa daquela situação jogava sobre si. Carla passou o resto da viagem trancada no banheiro do vagão, sentada no chão chorando até que ouviu a mensagem do condutor que haviam chegado ao destino. Desceram na plataforma, as duas em silencio, Carla com o olhar e a face sempre voltados para baixo seguia um pouco afastada, não queria que percebesse o inchaço ou a vermelhidão de seu rosto, só pioraria as coisas. Enquanto se afastou do trem notou que em algum momento perdeu-se e se tornou igual àquela máquina.
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