Chegou à cidade ao final da tarde, um lugar novo pra uma nova vida. Foi para Trindade para se isolar, precisava se afastar para processar tudo o que aconteceu. Lembrou-se deste lugar, uma pequena vila que sobrevivia da agropecuária, onde algumas pessoas tentavam a sorte nas minas que existem nas três montanhas que a cercam. A vila não possui grande proteção, um delegado da Armada e os cruzados só vão à cidade a cada três meses, um ótimo lugar para alguém fazer serviços de mercenário. Ali seu passado não ia importar; as pessoas não iriam questiona-lo contanto que desse cabo as ameaças locais.
Pegou o trem até a cidade mais próxima e depois viajou a pé até lá, não era difícil de encontrar, simplesmente seguir em direção do vale no centro das três montanhas. Pequenas fazendas de agricultura familiar cercavam a vila, elas cresciam com os córregos que formavam das nascentes no topo das montanhas. Fazendas com criações de animais para ordenha e abate; plantações de legumes, grãos e algodão. Não havia autômatos ou homúnculos trabalhando nas plantações, não havia nenhum maquinário pesado apenas coisas simples que precisam de operadores e tração animal, não se parecia nada com as grandes cidade-estado de Constela.
Uma vila bem rustica se formou no centro do vale, a maior parte da população era rural então não há muito por lá. Ela crescia em volta de uma igreja e um pequeno parque na sua frente, a igreja deveria ser geral, se há um culto principal deve ser Esperança ou Compaixão. Contudo não existem estatuas ou símbolos sagrados das entidades destes cultos, apenas uma pequena igreja genérica que deveria ter celebrações aos fins de semana para população da vila. Se ainda fosse um cruzado poderia pedir abrigo, sua reputação seria capaz de lhe dar um lugar na capela, contudo abandonou o manto e não queria revelar sua identidade.
Outros estabelecimentos necessários para a vila também se destacavam, prefeitura, mercado para os fazendeiros venderem os produtos que não consomem, veterinária para os animais, carpintaria, até mesmo uma mecânica para arrumar os maquinários simples da fazenda, todas as construções com arquitetura semelhante, com fundações de pedra e paredes de madeira rustica. Os materiais mais comuns da região, devem haver pedreiras junto às minas.
Logo ao chegar recebeu saudações do acendedor de lampiões. Via que todas as luzes estavam acesas só faltando as da entrada da cidade.
-Boa noite forasteiro! - fazendo um gesto com seu chapéu puído. –Recém-chegado na cidade? Algo que possa fazer por você?
O homem tinha voz rouca e arrastada típica do tabagismo, ele usava roupas puídas e remendadas. Seu rosto era gasto com rugas, olhos cansados, um enorme nariz com uma ponta vermelha assim como suas bochechas, talvez estivesse um pouco bêbado, uma postura curvada. Mas não falava com ar de desdém parecia estar sendo realmente gentil.
-Boa noite meu senhor.– Acenou com a cabeça em sinal de cumprimento. –Vejo que está terminando uma noite de serviço. Não desejo abusar da sua gentileza, mas se puder me indicar onde posso passar a noite e ter o que comer, serei grato. Gostaria também de um fumo se não for abuso de minha parte.
O homem enfiou a mão no bolso do casaco gasto e retirou uma cigarreira de metal fosco, estendeu até Bruce para que pegasse um dos cigarros de palha. Bruce pegou um e o levou até a boca, estalou os dedos e uma pequena faísca iluminou o ar, seus dedos esquentaram o suficiente para acender o fumo. O Acendedor ficou um pouco estupefato pelo que fez para acender o cigarro, mas após um instante voltou a sua atenção. Percebendo que ele pegou um cigarro também retirou um para fumar, o acendeu e começou a tragar.
-O senhor pode procurar a estalagem do Barbosa, lá vai ter onde dormir, o que comer, beber e fumar! Disse após expirar a fumaça de seus pulmões
-Obrigado por sua hospitalidade! Os meus acabaram durante a viagem. Bem vou até essa estalagem, tenha uma boa noite! – Acenou mais uma vez com a cabeça em sinal de despedida.
O Acendedor se despediu com o sinal do chapéu. Ter sido chamado de senhor pelo acendedor não surpreendeu Bruce, mesmo sendo um rapaz novo, os últimos meses o tinham destruído. Os vícios sugaram sua juventude e o completo desapego à vida não ajudava. Não fazia mais a barba, que mesmo sendo rala estava grande, o cabelo precisava de um corte, estava bagunçado e com tamanhos desiguais, banhos muito ocasionais e roupas maltrapilhas, havia se tornado um mendigo.
Quando chegou à estalagem o movimento estava baixo, pegou um quarto onde largou suas coisas, desceu ao térreo e pegou uma mesa no fundo e decidiu ficar plantado lá bebendo e fumando até ser capaz de dormir. Em pouco tempo o lugar encheu e todas as mesas estavam ocupadas, felizmente nenhum dos bêbados o incomodou e pode aproveitar as cervejas e cigarros.
Um Rapaz se aproximou de sua mesa carregando uma bandeja com comida e bebida, sua paz em curtir a solidão e se embriagar até não ser mais capaz de se mexer ou se manter acordado seria interrompida. Um garoto novo, cabelos castanhos curtos e espetados, olhos verdes, não tinha barba, mas estava um pouco sujo de carvão no rosto, altura um pouco acima da media, corpo magro e atlético, suas roupas eram simples indicavam que trabalhava nas minas, empioradas, sujas de terra e carvão. Ao se se aproximar da mesa disse:
-O senhor se importa de eu me sentar na sua mesa, não tem outros lugares disponíveis - Disse enquanto observava com curiosidade a mesa cheia de garrafas e cigarros apagados. -Eu não pretendo incomodar.
-Está bem garoto, puxe uma cadeira – Disse após um longo suspiro. –Não estou esperando ninguém, não sou egoísta o suficiente pra deixar você sem um lugar pra sentar. –Falou entre uma tragada e outra, um gole e outro.
-Você também é novo por aqui? Eu cheguei faz um mês, meu nome é Ada – Disse com a voz cheia de energia tentando passar um ar amigável. – Você não me é estranho... É alguém famoso?
Já estava se arrependendo de deixar o pivete sentar-se à mesa. Não gosta de mentir, mas entregar sobre sua vida podia causar exatamente o que não procurou indo para a vila.
-Que legal – Disse de forma ríspida e seca, mas percebeu que a atenção e curiosidade do garoto não mudaram mesmo sendo rude. –Meu nome é Bruce, cheguei hoje e não, eu acho que saberia se eu fosse famoso. É indelicado ficar fazendo perguntas aos outros –
O garoto devorava a comida como se não houvesse amanhã e não tinha muita etiqueta, parecia um animal faminto. Mesmo que estivesse aproveitando muito a refeição ele não tirava sua atenção de Bruce. Manteve-se muito tagarela e continuou fazendo perguntas, mas falando sobre ele também. Tinha varias histórias engraçadas e sabia conta-las muito bem, fazendo vozes e dando o tempo certo para as piadas, talvez fosse o álcool, mas Bruce acabou rindo de algumas das historias e achando a companhia divertida. O garoto realmente se esforçava para animar seu humor. A historia que mais o fez rir aconteceu na cidade, um mistério de duas semanas sobre grunhidos assustadores na caverna que não passavam de um dos mineradores dormindo escondido e roncando em um dos tuneis.
A noite avançou até a hora que o bar encerrou as atividades e todos ou iam embora ou subiam para seus quartos. Bruce havia perdido a noção do tempo, fazia tempo que realmente não se divertia daquela forma, durante a conversa uma parte de seu sofrimento não estava o afetando, mas estava na hora de deitar e descansar da viajem.
-Ada, agradeço pela companhia. Talvez você nunca consiga compreender o que significou para mim. –Havia um pequeno sorriso em seu rosto, entretanto o olhar continuava perdido e vazio. –Boa noite.
Assim que se levantou da mesa o momento se acabou, como se tivesse acordado de um sonho e a realidade o arrastou de volta a seu sofrimento. Contudo, mesmo que pouco, a tristeza parecia estar mais amena, talvez aquela noite dormisse bem, talvez os pesadelos não ocorressem.
-Bem Bruce, quem sabe um dia me conte o que quer dizer com “o que isso significou para mim” e o porquê de ter abandonado o manto dos cruzados “Sr. Aprendiz de Cardeal”– Disse isso com um sorriso no rosto sem soar arrogante ou sarcástico. O interesse que passou era real, demonstrando que seus segredos estavam seguro. –Boa noite!
Bruce subiu até seu quarto, não respondeu aquilo, entendeu que Ada não pretendia comprometer o que desejava esconder. Esta vila, coisas interessantes poderiam acontecer ali. Lembrou-se de sua amada, dizendo que gostaria de morar na pequena na vila de Trindade, caso um dia eles resolvessem se aposentar, tocou sobre a aliança que carregava em um cordão no pescoço. Entrou em seu quarto e respirou profundamente enquanto se esforçava para não desabar.
-Bem Nora eu vim até aqui trazer suas cinzas, mas creio que também estou aqui para juntar meus pedaços. – Pensou sozinho enquanto sentia seus olhos se encherem de lagrimas e sentiu seu peito ser atravessado como se fosse baleado, deitou-se na cama e ficou em silencio até dormir.
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