Scott voltou novamente seus olhos para a página aberta do exemplar em sua mão e tornou a ler.
“Até hoje, milênios depois, a muralha de Anatus resguarda o vilarejo. Mas o resto da ilha, além desses limites, vive empesteado por criaturas perversas, ótimas para treino e caça, sendo de excelente serventia para jovens aprendizes da lendária Academia de Rostwood.
“A ilha, como um todo, não apresenta perigo estremo, já que é raro surgir em sua fauna seres de alta categoria de periculosidade. O último registro atípico foi o de um dragão montanhês de categoria cinco, lá avistado a cem anos e eliminado por um próprio aluno da Academia…”
— Uau, que… impressionante! — elogiou Artur maravilhado.
— A história de Rostwood é muito importante — disse Scott. — Ouvi dizer que a Academia é um local incrível. Forma gerações de pessoas, treina gerações de guerreiros, é de fato um sonho para muitos e realidade para poucos, eu realmente fico impressionado de conhecer alguém que nunca ouviu falar desse lugar.
Artur mais uma vez desviou seus olhos constrangidos e melancólicos para seu balde. Scott observou seu exemplar fechado por um breve momento e comentou:
— É um bom livro, só é uma pena estar tão desatualizado!
E então o guardou.
— Como assim?
— Aqui diz não haver criaturas poderosas por lá, mas… sei não! Ouvi alguns boatos ao longo da viagem que isso não é totalmente verdade.
— E o que dizem?
— Que parece que aquele lugar se tornou o lar de uma espécie de demônio.
O jovem Allen arregalou os olhos.
— Um… um demônio?
— Ah, mas isso não deve passar de boato — opinou com um grande sorriso. — Mesmo se tivesse isso não importaria para mim, estou tão focado em ir que creio que demônio algum vai me amedrontar e me fazer desistir. Eles devem inventar essas coisas só para selecionar os melhores, os mais corajosos, aqueles que se arriscariam a ir mesmo tendo ciência desses rumores maldosos.
— Eu me arriscaria! — comentou Artur admirando o céu. — Quero mesmo sair deste lugar algum dia.
— E vai, calvariano! Eu também ansiava em sair de casa para explorar o mundo. Ser um guerreiro, um aventureiro, é como se eu tivesse nascido para isso. Bom, agora aqui estou eu dando o primeiro passo em direção a isso, né? — reiterou Scott, orgulhoso de si. — Pra ser sincero, só essa viagem já está sendo uma baita de uma aventura.
Scott acrescentou uma gargalhada amigável, o jovem Allen correspondeu aquilo com um sorriso. Nunca na vida conheceu uma pessoa tão semelhante a ele e, ao mesmo tempo, tão diferente. Aquele encontro parecia até ser obra do destino.
A satisfação estava nítida no rosto daquele simpático e carismático estrangeiro, o que era admirável e, simultaneamente, invejável.
Tudo o que o menino Allen sentia era infelicidade por ver a oportunidade de seguir seu caminho tão perto e tão longe. Era cruel conhecer pessoas que estavam realizando o sonho que ele jamais poderia realizar, era como se o próprio universo zombasse de sua angústia.
O poço já estava bem próximo da dupla.
— Um dia — continuava o recruta, com um olhar sonhador voltado para o céu azul —, terei finalmente gravado em meu peito a tão respeitada marca de Rostwood e, assim sendo, todos me reconhecerão como um veterano da Academia por onde quer que eu vá.
— A marca de Rostwood?
— Ah, vamos lá! Isso você já deve ter visto por aí! — Artur o encarou confuso e em silêncio após uma pausa proposital do rapaz. — É um símbolo, que é gravado em todos os membros que se formam na Academia — esclareceu Scott finalmente. — É um desenho pequeno de dois machados cruzados com um “R” no meio.
— Com… um “R” … no meio?
— Sim.
Assustadoramente, Artur já vira sim um emblema que batia com aquelas descrições. Seus olhos arregalaram-se de imediato quando seus pensamentos o levaram a descoberta de uma verdade chocante.
— Aí, chegou sua vez! — alertou Scott fazendo o rapaz quebrar o transe profundo o qual se enfiara.
— Hã? O que disse?
— A água!
— Ah, sim! É-é claro!
∴
Larry saiu tarde da ferraria e chegou em casa pela noite. Ele pendurou sua capa em um gancho e caminhou em direção a sua tradicional poltrona. Porém, algo interferiu sua trajetória: seu filho mais velho.
O menino estava de braços cruzados e portava uma feição nada agradável em seu cenho. Tudo indicava que ele estava à sua espera.
— Que foi? — perguntou o homem impaciente.
— Deixa eu verificar uma coisa, pai!
Artur ergueu-se do lugar em que estava, seguiu na direção do ferreiro e puxou a gola de sua veste para baixo de modo que ele pudesse ver com clareza a marca estampada em seu peito, aquela marca que havia ali desde quando suas memórias poderiam alcançar o passado.
E ali estava nítida a confirmação que o menino passara o resto de seu dia refletindo. No peito de Larry, gravava-se um símbolo que batia fielmente com a descrição dada por Scott Raymond: um desenho pequeno de dois machados cruzados com um “R” no meio.
— Sai pra lá! — Larry empurrou o filho rudemente para longe e ajustou a veste.
— Eu já suspeitava!
— O que?
— Essa marca que você tem não é de guerra como você disse para a gente, eu descobri tudo!
Após alguns segundos efêmeros de silêncio, Larry soltou um breve e debochado sorriso de um modo provocador e frio, confirmando indiretamente a veracidade de tais acusações. Em seguida, o homem caminhou até sua poltrona e sentou-se naturalmente com um total desdém. Ao cruzar as pernas depois de um suspiro duradouro e audível ele então perguntou:
— Tá. E daí?
— “E daí”?! — repetiu indignado. — Por que escondeu da gente a nossa vida inteira que você estudou lá? Você nunca nem mencionou a existência daquele lugar para a gente!
— Por um motivo muito simples, Artur: você!
— Eu? Como isso tem a ver comigo?
— Eu sabia que se eu falasse com você sobre Rostwood, você iria querer partir para lá o quanto antes e fazer da minha vida um verdadeiro inferno, mais do que já faz diariamente.
— E por que tem que ser assim, hein?! Por que você quer tanto que eu não saia daqui? Do que você tem tanto medo? — vociferou o menino alterando a voz a cada pergunta.
— CALE-SE!
Artur já não deixaria mais se levar pelos seus gritos, pelas suas hostilidades. Era hora de mostrar sua força também.
— Hipócrita! — exclamou o filho com veemência, atraindo para si um olhar homicida do pai. — Você não vai mais me prender nessa ilha! É a minha vida e eu farei o que eu quiser com ela e se o caminho for Rostwood é para lá que eu vou!
— Ah, vai?! — ironizou Larry pondo-se de pé. — Com que autorização?! Você precisaria de mim para assinar os papéis de sua ida e eu nunca vou assinar! NUNCA!
— Então eu arrumo alguém que assine no seu lugar!
O pai deferiu um tapa contra ele, mas o menino desviou, de modo a esbarrar na mesa ao lado e fazê-la cair. Não deixaria mais que agressões o impedisse de falar. Já estava esgotado daquilo, de todas as formas.
Artur parecia ter perdido completamente o medo daquele homem, o qual insistia em controlar as rédeas de sua vida sem hesitar.
— É assim que vai ser, seu moleque? Então vá embora! Vamos ver se você consegue ou ao menos se tem coragem.
— Eu tenho! — exclamou enfurecido. — E vou!
— Só não se esqueça que quando voltar, não haverá mais espaço para você nessa casa.
— Saiba que mesmo que eu não consiga ir para Rostwood, para cá eu não volto mais! — afirmou com muita potência. — Vou pegar qualquer navio naquele porto e sumir no mundo… pa-PARA SEMPRE!
Tal afirmação mudou radicalmente algo na feição de seu pai. Por um momento, Larry não esboçava fúria, mas espanto. Talvez aquela rigidez jamais vista em seu filho, tivesse o assustado um pouco.
O rapaz já não queria mais digladiar verbalmente contra ele, estava farto disto, tornara-se algo rotineiro demais em sua vida. Já era hora de agir, de dar um basta definitivo em tudo. Já estava decidido do que iria enfim fazer.
Perante então o silêncio ensurdecedor ali gerado, o menino nem hesitou em se mover. Ele deu de ombros e saiu da frente do pai em direção a bagagem já pronta que descansava ao lado de sua cama.
— VOLTE JÁ AQUI! — berrou o homem, mas o garoto não deu ouvidos.
Larry continuou a lançar gritos enfurecidos no ar, mas o filho os ignorou completamente. Quando chegou no aposento, o menino fechou a porta e se deparou com uma cena dura de lidar em sua cama. Harry segurava os pertences dele amarrados esboçando um tristonho semblante.
Por um momento, os gritos abafados do pai furioso foram completamente esquecidos. Artur percebera que não havia considerado muito bem como os seus atos afetariam o irmão, o qual certamente não tinha culpa alguma de nada daquilo.
— Você vai… mesmo ir embora? — perguntou o garoto sem conter as lágrimas.
O rapaz se sentou ao lado dele e secou seus prantos com o dedo.
— Não chore, Harry! Eu já não pertenço mais a esse lugar.
— Não! — suplicou o irmão. — Eu… eu não vou mais te ver?
— É claro que vai, eu vou voltar para te visitar, mas quando acontecer, já vou ser um homem independente. E papai terá que aprender a lidar com isso. — Artur puxou a bagagem, mas o irmão resistiu e a segurou com mais força. — É a minha vida, Harry! Se eu não lutar pela minha independência agora eu nunca vou ter uma.
— Não!
— Solta! — exclamou o menino puxando com tudo os pertences da mão do irmão, forçando-o largar. — Você vai me entender quando tiver mais idade.
O rapaz amarrou a bagagem em seu corpo, deu meia volta e diante dos olhos magoados do irmão, partiu dali.
Antes de alcançar a porta da saída, o menino teve que passar mais uma vez pelo seu pai furioso, vociferando incessantemente em seus ouvidos.
— Você não faz ideia de como se cuidar sozinho! Não vai durar um dia sequer lá fora, vai voltar correndo. Artur! — O menino saiu de casa e fechou a porta na cara dele friamente. — ARTUR!
O homem a abriu a porta e avançou até a rua.
— ESPERA! — berrou Larry mudando inesperadamente seu tom de voz e chamando a atenção do rapaz, o qual interrompera bruscamente sua caminhada.
Pela primeira vez em toda sua vida, Artur via seu pai chorar.
— Você sabe… — dizia o homem secando o pranto —, você sabe porque não quero que vá! Eu só quero… protegê-lo, meu filho! Sua mãe, em seu leito de morte, me implorou para que eu mantivesse vocês em segurança.
O menino perdera as contas de quantas vezes escutara aquilo.
— Não pode me proteger para sempre, pai. Você já completou sua tarefa, agora é a minha vez de completar a minha — respondeu o jovem convicto, suprimindo a dor que sentia ao ver aquilo. Embora externasse solidez quanto aos seus próximos passos o seu coração estava dilacerado. — Se a questão é me manter em segurança, não acha que tenho que aprender a fazer isso sozinho? — acrescentou.
Larry aproximou-se do rapaz, parado na rua bem ao lado de um lampião.
— Artur, você só tem catorze anos, não tem maturidade o suficiente para saber o que é melhor para você. Venha para casa!
Com um sorriso que prendia as lágrimas, o jovem encarou o homem diante de si e respondeu:
— Felizmente… eu acho que tenho. E já tomei a minha decisão. — Ele se afastou de costas lentamente sem desviar o olhar do pai. — Sinto muito!
O jovem deu meia volta e desapareceu pelo breu da viela mais próxima. Sem parar e sem conseguir olhar para trás.
∴
— Mas… você disse que não tinha fugido de casa — comentou Pyke confuso.
— Eu não disse isso, eu disse… que era complicado.
Já havia um bom tempo que ninguém mais falava a não ser o jovem Allen naquela roda de conversa, os olhos pelos arredores permaneciam hipnotizados nos dele, o que era até assustador.
— Seu irmão também veio, não é? Como foi… que isso aconteceu? — perguntou Kelly.
— É?
Artur e Scott se entreolharam ali como se ambos soubessem a resposta para aquela pergunta, embora o amigo estrangeiro ali presente só soubesse por partes.
— A história não termina por aí, ainda restava um dia até a manhã do embarque, não é? — O rapaz encarou os pássaros que cruzavam o crepúsculo daquele fim de tarde e acrescentou: — Mas sabe? Talvez sair de casa naquela noite tenha sido a melhor coisa que eu fiz na minha vida.
— E por quê?
— Porque foi com isso que mostrei ao meu pai… que uma hora ou outra, inevitavelmente, todo fruto… se desprende do pé — respondeu pensativo, fazendo todos ali trocarem olhares curiosos. — Embora… eu tenha caído da pior forma possível… ele entendeu. Acho que… no fundo ele entendeu.
Artur eventualmente, gostava de comparar a sua vida a um livro de ficção. Se fosse uma fantasia, qual parte seria essa? Um final feliz para sua história ou apenas o começo de uma misteriosa jornada?
De repente, uma sineta distante tocou, alertando a todos o fim do momento de repouso. Diante disso, Artur se ergueu de onde estava com um sorriso há tempos oculto em seu rosto e comunicou:
— Eu tenho que ir agora, o capitão falou para eu cobrir a vigília durante a noite.
— Ah, mas e o restante da história? — queixou-se Pyke frustrado.
— Prometo que conto o resto depois, tá?
— Então… então tá! — respondeu Kelly. — Boa sorte!
— Até mais!
Com um sorriso satisfatório em seu rosto, o menino acenou para todos e seguiu o seu caminho.
∴
FIM DO CAPÍTULO
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