Após regressarem para casa, Larry colocou seus filhos novamente no quarto e fechou a porta de forma agressiva. Dado o ruído estridente vindo da fechadura, o homem os trancara ali.
Embora fosse costumeiro ver uma atitude rude vinda dele, aquilo fora repentino demais para simplesmente ser ignorado. Havia algo de muito estranho naquela postura, algo a se questionar.
Inquieto, Artur sentou-se em sua colcha e petrificou seu olhar no vazio, sendo levado por seus mais profundos pensamentos, enquanto o irmão o observava em silêncio do outro lado do ambiente, acomodado por baixo daqueles lençóis.
— O-o que houve? — perguntou o garotinho.
— Papai está estranho.
— Como?
Harry era mesmo muito inocente para ter um senso crítico. Não era como o irmão o qual suspeitava sempre de muitas coisas em seu dia a dia. O rapaz aprendera como ninguém a não subestimar as capacidades do pai e da sua possessividade em relação aos filhos, uma possessividade contundente e que beirava às vezes a insanidade.
Ele estava escondendo alguma coisa.
O menino se ergueu da cama e caminhou a passos lentos em direção a porta. Ao pausar sua caminhada ele girou silenciosamente a maçaneta, confirmando assim uma de suas suspeitas.
— Ele nos trancou.
Aquilo parecia evidenciar ainda mais que havia algo estranho pairando no ar, Larry nunca chegou ao ponto de fazer isso com os seus filhos.
Intrigado, Artur voltou seus olhos instantaneamente para a janela do aposento e dali, viu uma possível fuga. Instintivamente, ele atravessou o ambiente aos olhos curiosos do irmão e abriu a esquadria, liberando a entrada do vento frígido da madrugada.
— O-o que tá fazendo? — perguntou Harry, visivelmente espantado e preocupado com as próximas ações do rapaz.
— Eu sei que o papai está escondendo alguma coisa de nós. — Ele debruçou-se sob o peitoril e acrescentou: — Eu vou voltar pra lá, você vem comigo?
— N-não! — exclamou rapidamente.
Aquela resposta parecia óbvia vinda de alguém como o seu irmãozinho, o qual dificilmente postergava a autoridade de Larry, não por respeito, mas sim por medo.
— Tudo bem, retorno assim que possível. Tá? — afirmou antes de pular rumo a rua encharcada pela água da chuva.
∴
O céu já clareava aos poucos.
Ele chegou o mais próximo que podia dos jovens resgatados, uma vigorosa barreira de guardas o impedia de avançar mais. Eles permaneciam agrupados sobre um velho píer enquanto os últimos barcos retornavam.
Ao seu redor, concentrava-se muitas outras crianças curiosas da vizinhança, se apertando para conseguir enxergar melhor. Ele se familiarizava com todos aqueles rostos, mas nenhum era conhecido de fato, Artur não tinha amigos.
Contudo, dentre todos ali havia uma exceção, uma das poucas pessoas próximas a sua idade que residia naquela ilha, mas que ele não esperava que fosse aparecer naquele meio, com suas vestes de dormir e com seus cabelos alvos, longos e lisos.
— Anna! — chamou ele erguendo o braço com um sorriso.
Ao escutar o chamado, a menina olhou para o lado e se aproximou do rapaz, atravessando o tumulto de pessoas imprensadas.
— Oi! — saudou a menina ao enfim chegar com uma calorosa expressão.
— Deixaram as crianças do abrigo sair também para vir ver?
— Claro que não, mas eu não podia perder essa — acrescentou, unindo suas mãos por trás das pernas enquanto olhava os distantes botes retornando mais uma vez.
— Espero que isso não te traga problemas — comentou o jovem sem desviar o olhar dela.
— Não vai acontecer nada.
Anna rotineiramente negligenciava as restrições que eram impostas a ela e aos demais órfãos do rígido Abrigo de Calvária, o que já lhe acarretou sérios problemas.
— Vem! — exclamou a garota de modo repentino, puxando-o pelo pulso para mais perto do evento.
O tumulto estava mesmo forte ali naquela manhã, a aldeia inteira parecia ter despertado com aquele incidente.
Aquilo até o fazia recordar um dos livros que lera sobre aventuras em alto mar, em que um jovem plebeu, contrariando tudo e todos, decidiu afastar-se uma milha náutica de seu povoado só para enfrentar um impiedoso kraken que naufragava todo e qualquer navio que se aproximava de sua ilha, prejudicando assim até a rota comercial e isolando-a completamente.
Artur se deleitava com tipos variados de literatura, mas fantasias épicas eram suas paixões. Era alentador se colocar no lugar de grandes heróis, acompanhar suas odisseias, ver-se se arriscando em prol de um bem maior assim como eles.
Certamente aquele fora um dos contos mais bonitos que o menino Allen já lera em sua vida e seria com certeza um dos quais ele recomendaria se tivesse alguém para recomendar. Seu irmãozinho, Harry, porém, não se interessava por tais conteúdos e com certeza não leria um tipo de coisa proibida pelo pai; Anna também não possuía os mesmos gostos que ele embora fosse sua principal fonte de livros como esses.
Ela tinha contato direto com o grande e diversificado acervo do abrigo. Era uma benção divina quando ela surgia com um novo exemplar para lhe emprestar. Aquela solicitude certamente era algo que deveria ser sigiloso entre eles.
Ler aquelas coisas e se perder em um mundo diferente era tudo o que tinha de mais atrativo a se fazer naquele lugar, onde nada mudava, onde nada acontecia, onde a vida monótona tendia a depreciar cada vez mais seu coração inflamado por um espírito aventureiro. Era tal chama que lhe fazia almejar por uma única oportunidade de finalmente sair de lá, para que assim ele pudesse finalmente escrever a própria história.
Quando o último bote finalmente desembarcou no píer, dois adultos saíram de dentro, um homem de cabelos e de volumosas barbas grisalhas que possuía uma aparência semelhante à de um pirata; além de uma senhora de óculos e cabelos brancos presos com um coque.
— Saudações a todos, lamento o transtorno — disse o homem à comunidade ao redor com sua voz rouca e aparentemente cansada. — Como puderam testemunhar, não tivemos uma noite nem um pouco agradável.
O sujeito utilizava em sua cabeça enrugada um longo chapéu preto com penas brancas, em suas costas ele pendurava uma grande besta e uma aljava repleta de flechas, dentre elas algumas que cintilavam cores distintas. Ele calçava botas pretas de cano longo e trajava um colete de couro longo e muito desbotado em cima de uma veste clara, encardida e amarrotada, enfiada por baixo de seu cinto.
Já a senhora utilizava vestimentas mais comportadas e aparentava ser uma pessoa muito séria, carregava consigo uma prancheta. Ela parecia estar contando criança por criança no local com seu dedo trêmulo e enrugado.
— Ótimo Wiggs, parece que não deixamos ninguém para trás — observou ela anotando algo com uma pena no pergaminho preso a sua prancheta.
— Abram espaço! — ordenou subitamente uma voz forte por trás de toda aquela multidão. — Abram espaço para o Barão Nicolas das ilhas do sul.
E assim foi obedecido, o povo abriu um corredor extenso onde passaram alguns guardas escoltando um homem de vestes elegantes, de barba e cabelos grisalhos, montado em um corcel branco.
O Barão Nicolas era o homem mais rico e o mais influente da região, conhecido por muitos e temido por todos. Boatos diziam que ele possuía um palacete em cada ilha do arquipélago sul, um para cada época do ano.
Ele puxou as rédeas do cavalo para pará-lo e observou lentamente a plebe ao redor, com um olhar de puro desprezo. Após uma leve tragada em seu cachimbo polido, o homem desceu de sua sela, atravessou naturalmente pela barreira de guardas e se aproximou dos recém-chegados que, intimidados, o observavam.
— Saudações! — cumprimentou o nobre. — Venho em nome de sua majestade a rainha Elena de Lunélia dar-lhes as boas-vindas a pacífica Calvária. Lamento com o que houve com o seu navio — acrescentou ele observando a navegação acidentada derrapando pelas rochas úmidas e afundando aos poucos nas águas da baía. — Foi um infortúnio, de fato.
— Por causa disto, haverá julgamento quando retornarmos a Rostwood, os mares estão muito agitados — respondeu o homem chamado Wiggs.
— Deveras companheiro, o tempo anda muito instável no sul.
A senhora séria que acompanhava o velho Wiggs, deu alguns passos em direção ao barão enquanto abraçava sua prancheta e após uma breve reverência, solicitou:
— Seria de grande valia para nós se vosso honorável senhor nos doasse algum navio para que pudéssemos continuar a nossa viagem pacificamente. Estaria em grande débito com o reino de Kingshill.
— Senhora, sirvo ao reino de Lunélia, não ao de Kingshill. Para mais, o mar o qual vocês irão muitos navios já naufragaram. A menos que queiramos outro infeliz prejuízo em nossas mãos, julgo que não seja de interesse da corte ajudá-los.
— O reino de Kingshill e o de Lunélia sempre foram aliados. Há anos que jovens de sua capital são recrutados para a Academia de Rostwood assim como os da capital de outros reinos — replicou a moça.
— “Academia de Rostwood”? — repetiu Artur curioso aos sussurros.
— Deve ser para onde eles estão indo, né? — supôs Anna no mesmo tom.
— Mas é claro que é para onde eles estão indo — murmurou inesperadamente uma voz jovial muito familiar surgindo entre eles.
Aquele rostinho rechonchudo tomado por sardas emergindo em meio a massa densa de pessoas era indistinguível. O amiguinho de seu irmão parecia entusiasmado.
— Victor? — Gowen não parecia estar nas proximidades. — Você… sabe que lugar é esse?
— É claro que sei, papai me contou muita coisa de lá. Cadê o Harry?
— E-ele ficou em casa.
— Puxa! — respondeu frustrado.
Os três jovens então, retomaram suas atenções para os adultos no cais.
— Bom, senhora, — continuava o barão —, embora eu aprecie o trabalho tradicional de Rostwood em produzir jovens prodígios e grandes gerações de guerreiros, não cabe a mim decidir pela corte. Contudo… — acrescentou ele voltando seus olhos para a comunidade lá concentrada —, julgo que isso pode ser negociado.
— O que quer dizer com isso?
— Possuo um navio que pode lhes ser útil. Ele deve chegar dentro de um ou dois dias, posso doá-lo para que vocês possam prosseguir com sua viagem, mas só o farei com uma simples condição.
— E qual seria ela, meu bom homem? — perguntou Wiggs, o qual parecia não ter o menor jeito para lidar com homens da nobreza, diferente da mulher que o acompanhava.
— Dê a essas crianças daqui uma chance. Não é sempre que aparece uma oportunidade dessas para elas aqui nessa ilha.
— Isso não vai ser possível, já recrutamos cidadãos de Lunélia, estivemos durante quatro dias na capital — respondeu o capitão após coçar a barba.
— Nem todos os jovens dessa ilha tem condições de ir para a capital. Dê a eles uma chance e eu os darei um navio para partir daqui — insistiu Nicolas.
Na perspectiva dos estrangeiros, aquela poderia parecer uma atitude bondosa do barão, mas na realidade, a maioria dos moradores sabiam que sua verdadeira intenção era livrar-se das crianças da aldeia. Aquele homem era conhecido justamente por detestar crianças, a ponto de tentar diversas vezes fechar o abrigo.
A moça de cabelos grisalhos aproximou-se de Wiggs e sussurrou algo em seus ouvidos.
— Muito bem, me parece justo! — concordou o homem, alterando sua postura. — Creio que tenhamos algumas vagas, já que houveram desistências.
Foi impossível não perceber os urros de comemoração dos jovens ao redor. Artur apenas esboçou em seu rosto um grandioso sorriso, algo o fazia pressentir que uma oportunidade incrível batia em sua porta.
— Muito bom, creio que o abrigo da região pode oferecer a essas… crianças alguns aposentos para pernoitar. Posso oferecer-lhes também suprimentos enquanto o navio não chega — disse Nicolas, retornando ao seu cavalo.
— Agradecemos sua ajuda, senhor — respondeu a moça.
— Os guardas os escoltarão até o Abrigo de Calvária — disse ele. — Caso falte, terei o prazer de doar-lhes colchonetes e roupas de dormir para supri-los durante a noite. Há tempos procuro me livrar de alguns trapos velhos.
— E nós precisando de uns — questionou Anna aos sussurros.
O homem montou novamente em seu corcel, deu meia volta e saiu galopando com seus homens em meio ao povo.
Os recrutas afadigados no cais se movimentaram para começar uma caminhada não tão longa até o abrigo, escoltados pelos guardas da região. A moça com a prancheta na mão, aproximou-se dos moradores e disse em voz alta:
— OS JOVENS QUE TIVEREM ENTRE OITO A DEZESSEIS ANOS E ESTIVEREM INTERESSADOS EM SE RECRUTAR, PASSEM AQUI NO PÍER AMANHÃ BEM CEDO COM O PAI OU GUARDIÃO LEGAL PARA REALIZAREM SUAS INSCRIÇÕES.
Ela e o capitão Wiggs então, saíram ao lado dos demais viajantes e dos guardas em direção ao abrigo, e daí, aos poucos, a concentração dos moradores curiosos foi se dispersando, já que o espetáculo finalmente chegara ao seu fim.
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