Os sinos da catedral de Calvária já anunciavam o tardar daquele dia, Artur, porém, recusava-se a voltar para casa. Ele, portanto, permaneceu no mesmo lugar onde havia passado o resto de sua tarde — sentado na beirada do cais agora deserto, iluminado somente pelo plenilúnio, abaixo de um amplo e majestoso céu estrelado.
O vento frio e os respingos gélidos da água da baía, agora mais agitada, não pareciam ser um problema. Ele gostava muito de ficar ali encarando o horizonte, aspirando um dia atravessá-lo rumo a uma vida diferente.
Seu sonho era ser um guerreiro algum dia, um grandioso, astuto e, talvez até, eternizado pelo nome. Mas aquele sonho parecia cada vez mais ímprobo aos seus olhos, já que se via preso sob as amarras firmes e intangíveis de seu pai no subúrbio mais isolado de toda Arcádia.
Desgastado pelo maior conflito de sua vida, ele então desabou de costas no chão do cais, de modo a admirar as estrelas, enquanto aquele silêncio sereno o fazia sentir as calmas ondas do mar chocando-se contra toda aquela costa.
E assim terminava seu aniversário naquele verão, de um modo tão decepcionante quanto no verão anterior.
Olhar para o céu estrelado as vezes lhe trazia paz, o fazia pensar em sua falecida mãe. Era algo supersticioso, porém ele queria acreditar que talvez ela estivesse mesmo ali, em algum daqueles pontos luminosos, olhando a incomplacência de seu marido e o sofrimento aterrador de seu primogênito em consequência disto.
Como ela estaria vendo tudo aquilo?
Será que aquela vida monótona, aquela pacificidade que chegava a sufocá-lo, era tudo o que o destino havia reservado para ele? Estaria fadado a viver naquele lugar afastado de tudo e de todos pelo resto de sua vida? Seriam os deuses assim tão cruéis?
Ele preferia morrer a ter que se submeter a algo assim pela eternidade. Sentia-se como um pássaro incapaz de voar, confinado em uma gaiola. Seu espírito clamava por aventuras, seu espírito clamava por liberdade. Aquela pacata ilha, definitivamente, não era lugar para ele, não havia futuro algum ali.
Sua falta de experiência e de recursos eram os únicos fatores que o impediam de embarcar em um navio e partir sem rumo algum para bem longe dali.
— Que porcaria de vida! — resmungou para si.
Artur, de repente, ficara alerta.
Passos lentos e descalços pareciam aproximar-se dele, acompanhados por uma fraca luminescência que cortava a penumbra da noite.
O rapaz contorceu o pescoço para ver quem era e se deparou com uma bela jovem de longos e esvoaçantes cabelos prateados, de olhos cinza-claros e indistinguíveis, trajando vestes de dormir brancas que reluziam com a incidência da lua. Ela, a qual segurava um lampião aceso, estacionou seus passos próximos a ele e abriu um gracioso sorriso em seus lábios.
— Feliz aniversário! — desejou com sua voz fina e angelical.
— A-Anna?! — exclamou ele voltando a se sentar. — O-o que você tá fazendo aqui tão tarde?
— Ah, eu poderia perguntar a mesma coisa — respondeu a jovem recuando o sorriso. — Mas acabei sabendo quando passei na sua casa.
— Você passou na minha casa?!
— Eu tava atrás de você, poxa! Tinha que dar meus parabéns, né? — acrescentou sorrindo novamente.
— Então você é a primeira — respondeu o rapaz sem esconder a melancolia. — Obrigado por lembrar!
Sem aquela menina em Calvária, Artur não sabia o que seria dele.
Anna era a única pessoa com quem ele conseguira firmar uma amizade ali, uma amizade duradoura e inabalável. Era a única pessoa com quem conseguia compartilhar segredos, com quem podia contar, com quem podia papear abertamente sem medo de ser ele mesmo, até quando o mundo parecia ir contra isto.
O único problema que os separavam era o universo que os envolviam. Ela era uma órfã do Abrigo de Calvária, limitada por excessivos regulamentos de conduta, não podia sair a qualquer momento daquele lugar, não podia ter muito contato com os outros aldeões, não podia sequer receber ou enviar cartas. Sua vida era muito mais regrada que a dele e, por isso, eles não se viam tanto quanto gostariam.
— Se-será… — murmurou a menina.
— Hum?
— …que eu posso me sentar com você?
— Ah, é… é claro!
A menina então, depositou o lampião no chão e acomodou-se ao lado dele. Ela certamente escapara na calada da noite de seu dormitório. Só conseguiam se ver quando algum dos dois infringia as regras.
— Sabe que não deveria estar aqui, não sabe? — observou o rapaz. — E se te pegarem fora da cama? E se…
— Eu… já fiz isso muitas vezes e não fui pega, lembra?
Ela inclinou o pescoço de modo a olhar nos seus olhos com aquela expressão amistosa e ao mesmo tempo misteriosa.
— O que foi… que meu pai te disse, hein? — desviou-se.
— Ele me disse que se eu te achasse era para dizer que ele trancou a casa e que vai ser melhor se você dormir na rua mesmo para aprender a ser obediente. — Artur enterrou suas unhas nas palmas das mãos ao ouvir aquilo e cerrou seus olhos. — Eu não quero que você durma na rua, então eu… acho que consigo te colocar dentro do dormitório e te esconder debaixo da minha cama. Acho… que não tem nenhum problema se você sair cedo — acrescentou pensativa.
— Não precisa.
— Não?
— Ele só diz isso para me provocar, mas eu sei entrar na minha própria casa.
— Jura?
— Eu juro — confirmou despreocupado. — Aliás, já te coloquei em enrascada demais — acrescentou com um sorriso sutil, talvez aquele fosse o primeiro que ele esboçava naquele dia.
— Bobagem! Amigos são pra isso, né?
— Então… — Ele recuou o olhar desconsertado e revelou: — Acho que não tem problema se eu te disser que… o livro que você me deu… acabou parando na lareira, não é?
— O-o que disse?!
— Si-si-sinto muito! — respondeu de imediato erguendo as mãos. — Eu-eu posso falar para a bibliotecária que… eu… eu… roubei o livro de você e…
— Ah, deixa para lá, está tudo bem! — interrompeu a menina retomando o sorriso em seu rosto. — Não quero que sua família assuma a dívida de um livro velho, posso inventar uma mentira melhor que essa.
O rapaz ficou um pouco surpreso por tal reação.
— E se… você se encrencar por minha causa?
— Como eu disse, amigos são para essas coisas — respondeu a jovem caindo de costas naquele píer com os olhos voltados para o céu. — Mas eu sei mentir bem! Bom, melhor que você com certeza!
Com aquela afirmação ambos abriram uma gargalhada amistosa, cortando prazerosamente o clima melancólico antes estabelecido naquele píer.
Ainda esboçando um volumoso sorriso, Artur aprumou o corpo e olhou fixamente para o horizonte.
— Um dia eu ainda vou sair daqui, sabia? — afirmou convicto. — E quando esse dia chegar, eu vou me tornar um grande lutador.
— E para onde você iria par vira um?
— Eu não sei. Será… que existe lá fora algum lugar para pessoas como eu?
— Deve haver, em… algum lugar.
O menino se uniu a amiga e caiu de costas naquele chão de madeira como fizera antes de sua chegada inesperada.
— Vou sentir sua falta quando for, você é meu único amigo — afirmou ela.
— Então… por que você não vem comigo, hein?
Surpreendida com a proposta, Anna voltou seus olhos para ele por um momento e tornou a se acomodar, ocultando a feição descontente em seu rosto.
— Você sabe o porquê. Meus desejos são diferentes dos seus, Artur — respondeu. — O abrigo daqui é um dos poucos que ainda existem no mundo, um dos poucos lugares em que posso ainda ter a chance de… encontrar uma família pra mim.
— Isso é tão importante assim?
— Pra mim é! Mas… parece que os sacerdotes dos outros reinos abominam a adoção. Falam… que é uma forma de legitimar filhos bastardos. — Ela pegou uma mecha se seus cabelos níveos e enrolou em seu dedo. — Mas, de toda forma, eu vou ficar muito contente em ver você seguir o seu caminho. É o seu sonho, né?
— É sim, mas…
— Então não desista dele! — O interrompeu com um tom rigoroso quase como um comando. — Assim como eu não vou desistir do meu — concluiu confiante.
Artur voltou seus olhos para a amiga e a contemplou por um momento.
— T-tá bom! Eu… espero que consiga encontrar o que quer.
— E eu espero ouvir muito ainda sobre seus feitos lá fora, tá? Enfrentando dragões, ciclopes e hidras, ilustrando histórias como um grande herói — comentou ela.
O menino tornou a encarar o céu infinito e, com muito mais confiança quanto a quem deveria realmente tomar as rédeas de sua vida, ele respondeu:
— Ouvirá sim.
∴
Comments (8)
See all