Diante daquele belo cenário, sentado reflexivo na beirada do cais de madeira que compunha o porto, Artur Jay Allen desviou seus olhos melancólicos para o livro de capa dura aberto em seu colo, enquanto as gaivotas riscavam o ar ao seu redor, preparando-se para repousar nas poucas e distantes árvores que tomavam o rochedo que delimitava a baía.
Um pouco distante de si, havia alguns homens labutando avidamente para carregar uma embarcação de madeira ali ancorada, enquanto outros pescavam naturalmente pelas docas tomadas pelo forte cheiro da maresia.
Todos ali envolviam-se em seus afazeres, ignorando completamente imutabilidade de suas vidas. Eram quase sempre as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas, dia após dia, incansavelmente.
Enquanto folheava com um pouco de inveja aqueles contos épicos de grandes guerreiros e exploradores entre seus braços, o jovem refletia seriamente sobre seu passado, presente e futuro.
Aquele já era o seu décimo quarto aniversário e, embora estivesse tão rodeado de trabalhadores, ele se sentia solitário, embora tivesse um lugar para dormir, se sentia desamparado. Seus desejos sempre foram os mesmos, mas ele jamais poderia desejá-los, era inconcebível, era inaceitável, segundo os cânones que regiam o local onde ele deveria chamar de lar.
O rapaz sabia que além daquela imensidão de água que o rodeava, havia um mundo belo, mágico e misterioso, porém, inalcançável e proibido, ao menos para ele.
Frustrado com aqueles pensamentos, ele fechou seu exemplar intitulado de “Heróis Arcadianos” e voltou seus olhos novamente para a natureza estonteante a sua frente. Aquela poção vasta de água parecia um espelho infinito apontado para o céu, refletindo sob a superfície quase toda plenitude alaranjada do entardecer.
O que fariam seus antepassados? E os heróis de suas histórias?
Não era fácil aceitar aquele confinamento que o impedia de ser feliz. Já estava a ponto de questionar a sua própria existência.
O que havia de errado com ele afinal? Não havia código ou juramento que o mantinha naquele ergástulo sem sentido, somente um pai que incompreendia as ambições de um filho, um filho que, por sua vez, já estava farto de viver apenas sonhando sem jamais poder dar passos para poder concretizá-los.
Passados alguns minutos de contemplação, o jovem finalmente se pôs de pé e apalpou as vestes para limpá-la.
Já estava ficando tarde. Embora quisesse que aquele pequeno e ilusório momento de liberdade fosse eterno, Artur sabia que necessitava retornar o quanto antes para casa se ainda quisesse esconder aquele livro.
O rapaz, então, ajeitou seus selvagens cabelos castanhos e volumosos, cuja tonalidade assemelhava-se discretamente com a de seus olhos. Dali, ele partiu abraçando seu amado exemplar.
Dado seus limites naturais, a aldeia não era grande, mas era densa, o que a tornava um lugar não tão pacato como muitos gostariam, embora fosse o mais seguro dentre qualquer outro existente.
Calvária pertencia ao arquipélago sul no reino de Lunélia. Sua riqueza provinha principalmente da pesca e do artesanato.
Devido a vida próspera e harmoniosa que regia a rotina de seus moradores, o local atraía muita atenção de estrangeiros, desertores e até mesmo de fugitivos, pessoas estas que buscavam alguma vida tranquila, resguardada dos demais conflitos que envolviam os oito reinos.
No entanto, dado o fato de não haver lugar para muitos, a corte de Lunélia passara a controlar rigorosamente a chegada de imigrantes por lá, o que tornava aquela aldeia, acima de tudo, um local isolado.
As crianças ali nascidas e criadas, não possuíam muita noção de toda a imensidão oculta por aquele vasto horizonte que os cercavam. Esse não era o caso de Artur, embora tudo o que ele soubesse de fora viesse dos livros lidos e das histórias contadas pelos poucos viajantes que por lá passavam ou que por lá se estabeleciam.
Mas ele sabia que, ainda assim, aquilo era muito pouco.
O menino pausou seus passos no momento em que seus pés alcançaram finalmente a soleira da porta de seu humilde casebre. Aparentemente, seu pai, Larry Allen, ainda não havia chego da ferraria o qual trabalhava.
Perante aquela oportunidade, o jovem adentrou no ambiente mal iluminado e fechou a porta ao passar.
Ao atravessar lentamente a sala de estar, ele pausou bruscamente sua caminhada e voltou seus olhos desconfiados para a lareira ao lado. Chamas volumosas se alastravam pelos novos ramos de lenha seca cuidadosamente dispostos ali.
A pergunta que tomava a sua mente era: quem havia acendido aquilo?
Assim como muitas coisas naquele lugar, mexer na lareira era proibido. Seu pai jamais lhe deu tal permissão, muito menos ao seu irmão mais novo, o qual parecia também não estar presente.
— Vejo que enfim regressou! — Aquela voz indistinguível surgiu de súbito por trás, causando-o um forte sobressalto.
Artur se virou e encarou o rosto maltratado e levemente enrugado de seu pai emergindo pela escuridão densa. Sua reação não foi tão discreta quanto planejara, mas em um movimento ágil ele ocultou o livro proibido pelas dobras de suas vestes.
Uma cabeleira escura, envolta em fios grisalhos tomavam a cabeça daquele homem, o qual aproximava-se lentamente com uma expressão duvidosa e intimidadora grafada no meio daquela barba rala.
— Mostre para mim o que tem aí! — ordenou.
— Mas… eu não…
— Mostre! — bradou, cessando seus passos ao alcançar o rapaz.
Ele parecia ainda mais ameaçador com aquela luz da lareira sendo refletida através de seus olhos.
Não havia mais para onde fugir, fora pego. Sem se ver com mais saída, o jovem Allen puxou gradativamente o volume encoberto para fora da túnica e o teve retirado de sua posse violentamente.
Sob seus dedos calejados, Larry Allen leu o título grafado naquela capa dura, sua feição mudou por completo. O garoto sabia que o aguardava ali, mesmo sendo seu aniversário.
— Então é isso, não é? Você continua a me desacatar — murmurou o homem em um tom vil.
Acuado, o menino imediatamente recuou o olhar constrangido para fugir do dele.
— Eu… eu…
— O que eu já falei sobre ler essas coisas de má influência?
— N-não faça nada, por favor! — suplicou Artur, temendo veemente as próximas ações do pai. — E-esse livro não é meu é da…
— Da órfã? — supôs o homem, referindo-se a única amiga que o garoto possuía naquele lugar.
— Isso! Ela… ela o pegou para mim da biblioteca do abrigo e… precisa devolver ele íntegro — explicou aflito.
— Entendi.
Em um ato agressivo, Larry nem sequer hesitou ao arremessar o exemplar na lareira, alimentando ainda mais as chamas que os iluminavam.
— O-o que você fez?!
— Pouco me importa como conseguiu isto. Não quero mais ver este tipo de conteúdo dentro da minha casa! Os próximos terão o mesmo destino!
— Mas…
— Cale-se! Seu moleque desprezível, como ousa me desacatar dentro de minha própria casa?! Debaixo do meu próprio nariz?! Quem você pensa que é?!
— Você… — disse o garoto horrorizado —, tem… tem noção do que fez?!
— Não há menor jeito de te corrigir, você é mesmo muito teimoso. Ignorante! Arrogante! — continuou o homem sem se conter. — Como eu queria que você fosse igual o seu irmão, disciplinado e obediente.
Artur tinha ciência de que escutaria coisas cruéis caso fosse flagrado, mas ainda assim aquilo era doloroso demais.
— Eu queria muito meter a mão na sua cara agora pra ver se você me ouve.
— E eu… queria que você não fosse meu pai — resmungou.
Larry, de imediato, deferiu um tapa no rosto de seu filho e o mesmo se afastou de costas até atingir a parede da casa, com a mão pressionando o local onde havia sido brutalmente golpeado.
— Se lê essas porcarias achando que o mundo é como descrito nessas páginas, saiba que você está só se enganando. Apenas eu sei como é o mundo longe daqui! — acrescentou apontando para o próprio peito. — Eu sei mais do que qualquer um nessa ilha! É em mim que você tem que acreditar!
— Por quê?!
— Porque sou seu pai.
Aquele rapaz ouvira a vida inteira sobre a perversão da humanidade e do risco que era viver uma vida fora de Calvária. Uma visão estranha e descomedida que o garoto sabia, lá no fundo de sua alma, que não era verdade.
Não era possível que tudo fosse tão difícil e hostil quanto aquele homem alegava ser em todos os quatro cantos da vasta Arcádia — nome este dado pela humanidade para se referir simplesmente a toda poção territorial conhecida pela cartografia. Aquilo era claramente uma perspectiva deturpada por uma mente desiquilibrada.
Artur sentia-se preso em uma caverna, forçado a observar as sombras e acreditar no que era pregado ali como verdade absoluta. Livros eram a única coisa que conseguiam libertá-lo e trazer luz às trevas que persistia em aluciná-lo.
— Como acha que vou deixar um filho meu se arriscar por aí? — continuou o pai. — Você jamais vai sair dos meus olhos, você jamais vai sair daqui.
— Eu… eu vou sim! — exclamou enfurecido enquanto permanecia a massagear a bochecha dolorida.
— Pois eu nunca vou permitir — afirmou novamente de um modo seco, como se tais palavras não pesassem dolorosamente sob seu filho. — FUI CLARO?!
O rapaz voltou seus olhos estupefatos para o vazio, tentando suprimir aquele sentimento insano que tomava conta de seu peito de simplesmente jogar tudo para o ar e acabar com aquilo sem olhar para trás. Já não conseguia tolerar tal injustiça.
— Você… não vai me prender aqui. Não por muito tempo. — Foi o que saiu.
— É claro que vou. Não me subestime moleque!
De modo repentino, um garotinho de oito anos surgira inesperadamente no cômodo, atraindo ambas as atenções para si. Ele parecia amedrontado com a discussão e, agora, desconsertado por ter sido visto. Era provável que ele estava no seu quarto esse tempo inteiro, brincando ao lado do seu único colega enquanto escutava tudo.
A paz era algo realmente ilusório naquela família, mas Artur acreditava que seu irmão não merecia assistir aquilo, testemunhar tantas desavenças, tantas brigas. Já não bastava viver silenciosamente sob a tutela de um pai como aquele?
Que tipo de infância era aquela que proporcionavam àquele menininho?
Foi pensando em Harry que o rapaz somente se desvencilhou do pai sem olhar nos seus olhos e, completamente calado, saiu pela porta da casa ignorando os berros dados em sequência por aquele homem agressivo.
Ele correu com tudo o que possuía para longe daquele ambiente hostil, para longe daquela realidade asfixiante; e assim, desapareceu pelas ruas já obscurecidas pela penumbra da noite.
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