A visão de Jehan ficou turva, e as vozes agora se misturavam ao crepitar da chama recém-acesa. Gidie e Melisende intensificaram o aperto, e era possível sentir o desespero deles. Em meio aos sons indistinguíveis, o grito de Cateline se destacou de forma clara:
— Fui eu mesma! — Vociferou ela. — Eu enfeiticei a jovem para que acreditasse que trazia a cura divina! Ó pobre Melisende, enganada pela feiticeira e amaldiçoada pela vida. Ferida, pobre Melisende! Tola e estupidamente fiel, confundiu a feiticeira com a voz do Senhor! Pobre, pobre e miserável Melisende!
Foi com pânico que Jehan sentiu o aperto em seu lado direito se afastar, e um baque foi ouvido. As chamas agora estavam altas, e a curandeira gargalhava enquanto bradava seus pecados em alto e bom som, para todos que quisessem ouvir.
A visão do camponês agora era apenas borrões em tons alaranjados, distorcidos pelas lágrimas. O cheiro de queimado beirava ao insuportável, e ele tateou ao seu lado até sentir a figura trêmula de Melisende, aos prantos.
Reunindo toda a força que conseguiu naquele momento, ele puxou a camponesa, pondo-a de pé, cambaleante, a fim de afastá-la dali.
Repentinamente, braços fortes o envolveram e ergueram no colo, levando-o para longe. Ele tentou gritar, mas logo uma mão firme em sua boca impediu-o de emitir qualquer som mais alto.
Aos poucos o rosto do ferreiro entrou em foco. Seus olhos estavam vermelhos, o suor escorria-lhe pela testa e ele estava ofegante. Ainda assustado, Jehan levantou um pouco a cabeça, e avistou Gidie poucos passos à frente, carregando Melisende desacordada.
Aliviado, ele deixou-se recostar novamente nos braços fortes, enquanto fechava os olhos tentava normalizar novamente a respiração. O cheiro de queimado ainda estava presente em suas roupas, e os gritos ecoavam de forma incessante em sua mente.
Eles seguiram em silêncio por algum tempo. Através das pálpebras, Jehan era capaz de perceber a iluminação do crepúsculo, indicando que já estava anoitecendo, embora não soubesse dizer quantos minutos ou horas haviam se passado desde a execução.
O camponês sentiu o homem deitando-o sobre uma superfície macia que constatou ser grama. Ele permaneceu deitado, apenas ouvindo o som dos outros se movendo por perto, tentando absorver o máximo do que acontecia ao seu redor, a fim de espantar as recentes memórias.
— Aqui. — A voz do bardo o despertou de seu transe.
Jehan sentou-se no gramado e se permitiu finalmente olhar em volta. Melisende estava deitada há pouco menos de um metro ao seu lado, coberta com a capa de Gidie, ainda desacordada. O ferreiro não parecia estar nas proximidades, mas antes que o camponês pudesse perguntar, o mais velho adiantou-se:
— Roul voltou para a aldeia. Ele foi falar com o padre. — Explicou.
— Onde estamos? O que aconteceu? — Indagou Jehan, sentindo-se confuso e derrotado.
— Você desmaiou. — Respondeu. — Vocês dois, na verdade. — Acrescentou, inclinando a cabeça na direção da camponesa inconsciente.
O mais novo não respondeu de imediato, apenas baixou o olhar para a grama, e pôs-se a arrancar as folhas, aflito, a fim de se distrair de alguma forma.
O som das roupas de Melisende se movendo indicaram que ela estava por fim acordando. Jehan a encarou em silêncio, enquanto ela sentava-se e olhava em volta, parecendo tão desamparada quanto ele.
Receoso, o camponês segurou-lhe a mão, e ela apertou a sua de volta, tentando inutilmente passar um pouco de segurança para o marido.
— Ouviu o que ela disse? — Questionou a voz falhada de Melisende. — Ela mentiu. Mentiu para levar toda a culpa. Cateline mentiu para me—
A frase foi cortada por um soluço brusco, e a camponesa desabou em lágrimas. Nem Jehan nem Gidie ousaram dizer nada, e a dor era clara na expressão de cada um.
Em pouco minutos, o ferreiro havia retornado e agora estava sentado em frente ao casal, ao lado de Gidie, esperando o clima pesado amenizar para que pudesse falar. O que não aconteceu, de forma que ele começou mesmo assim:
— Vocês estão seguros. — Anunciou. — O padre quer vê-los na igreja amanhã antes do pôr-do-sol, e disse que tem a cura.
Os outros três trocaram olhares confusos.
— Cateline me contou tudo ontem à noite. — Ele mordeu o lábio inferior antes de continuar: — Ela sabia que era um risco, sabia que seu pai iria denunciar a situação para o padre. Ela também pediu desculpas por contar seu segredo para mim.
Melisende conteve um soluço e apertou mais forte a mão de Jehan. Gidie olhava do casal para o ferreiro, sabendo que não seria prudente se intrometer naquele momento.
— Eu sinto muito pela situação de vocês. — Disse Roul. — Mas o padre assegurou que tem a cura, e que contando seis meses depois de amanhã, Melisende poderá ter filhos. Segundo ele, se trata de uma maldição da própria — ele fez uma careta — bruxa Cateline.
— Você sabia. — Rosnou Jehan. — Você sabia e não fez nada para impedi-la! Você compactuou com essa mentira estúpida!
— E por minha causa! — Exclamou Melisende, encarando o ferreiro de forma acusadora. — Tudo isso por causa de algo que sequer era da sua conta!
— Melisende, se acalme, eu—
— Não me acalmo, Roul! — Bradou ela, mais lágrimas escorrendo de seus olhos. — Cateline praticamente se jogou na fogueira para tentar me curar, você sabia disso e se negou a ajudá-la!
— Ela pediu isso! — Retrucou o ferreiro, alteando a voz. — Ela sabia que se desse errado, como imaginava que daria, o padre iria cuidar de seu caso!
— Que se dane o meu caso! — Gritou, se levantando bruscamente. — Que se dane os filhos que não vou ter, estamos falando de uma vida que existia de verdade e foi parar na fogueira! E você sabia!
Antes que o ferreiro pudesse responder, o som do alaúde foi ouvido, e os três viraram-se para o bardo, que agora segurava o instrumento e havia começado a tocar uma melodia triste.
Eles permaneceram em silêncio, ouvindo a canção melancólica, sentindo a adrenalina da discussão se esvair, dando lugar à angústia e a dor da perda.
— Não adianta discutirmos isso agora. — Afirmou o bardo, após tocar as últimas notas. — Não vai mudar o que aconteceu, não vai mudar a situação atual e só vamos culpar uns aos outros em um ciclo infinito até brigarmos de verdade e destruirmos a relação que temos.
— Gidie tem razão. — Admitiu Jehan, cautelosamente. — Não vamos trazer ninguém de volta, e nossa condição não vai mudar se não fizermos nada. E o que temos a fazer agora é o que Roul disse. Que por sua vez — ele suspirou —, era o que Cateline tinha planejado desde o princípio.
As palavras pareceram atingir os outros dois, pois nem a camponesa nem o ferreiro continuaram a discussão, e o clima infeliz pairou no ar sobre eles novamente.
O bardo tornou a tocar seu alaúde, e os outros permaneceram em silêncio, sentindo cada nota preencher seus ouvidos, como se tivesse o poder de amenizar a dor que agora compartilhavam. Nenhum deles parecia disposto a voltar para a aldeia naquele momento.
Jehan se aproximou de Melisende, passando um dos braços por trás da moça, em um meio-abraço, e recostou a cabeça em seu ombro. A camponesa, por sua vez, apoiou o rosto nos cabelos negros do rapaz, sentindo o que restara do cheiro de queimado impregnado em Jehan. Ou talvez ela própria tivesse tomada pelo cheiro e só percebera naquela hora.
Os dois fecharam os olhos, e permitiram mais uma vez as lágrimas rolarem por suas faces agora inchadas e coradas.
Roul se recostou em uma pedra próxima, chorando baixinho enquanto tentava não se condenar pelo trágico fim de Cateline.
Gidie continuava a tocar a melodia triste, com os olhos marejados, encarando o céu nortuno através da copa das árvores e sentindo a brisa gélida parecendo perfurar até seus ossos.
Naquela noite, não haviam estrelas visíveis. Naquela noite, não havia o barulho das canecas ou as risadas na taverna. Não havia cerveja ou sorrisos, histórias emocionantes ou poemas épicos recitados à beira de uma fogueira. Apenas o frio cortante, os nós nas gargantas e uma frágil esperança massacrada que não esperava mais nada de fato, acompanhada da melodia melancólica do bardo para seus ouvintes igualmente feridos.
Jehan não percebeu quando caiu no sono, tampouco foi capaz de sonhar. Acordou de forma súbita, sem ter certeza de que havia dormido de verdade. E se não fosse pelos raios de sol iluminando a floresta, o camponês não pensaria que já havia amanhecido.
Ele se levantou cuidadosamente tentando não acordar Melisende, sentindo todo o corpo dolorido e pesado. O ferreiro dormia na mesma pedra na qual se apoiara durante a noite, e o bardo já não estava ali. Foi com um certo alívio que Jehan percebeu a capa vermelha sobre a camponesa, indicando que Gidie não havia partido para a próxima viagem ainda.
Uma mão tocou-lhe o ombro, e ele virou-se para encarar seu dono. O bardo lançou-lhe um olhar sério e fez sinal para que o acompanhasse.
Jehan o seguiu, receoso, até a beira de um rio, e observou em silêncio enquanto o mais velho sentava-se em uma rocha e indicava uma outra ao seu lado. O camponês seguiu os passos do outro, abaixando-se no local indicado.
— Eu sinto muito por ontem — começou, pesaroso —, talvez se tivéssemos chegado alguns minutos antes…
— Não — ele suspirou —, nada teria sido diferente. Esse era o plano de Cateline. Ela planejava levar a culpa de qualquer forma, morrer como feiticeira para que o padre oferecesse a cura de bom grado. Não foi culpa sua, nem minha, nem de ninguém. Foi a decisão dela priorizar o problema de Melisende. E por mais que não concordemos com isso, só podemos respeitar tal decisão.
— Quando foi que este menino tão iluminado se tornou uma pessoa tão bela e admirável? — Perguntou o bardo no tom tão usado entre os dois.
— Este pobre camponês — disse, tentando acompanhar o tom — teve um exemplo magnífico para seguir. — Ele forçou uma risada, que nem de longe soou tão genuína quanto esperava.
Gidie forçou um sorriso também, e afagou os cachos do mais novo, orgulhoso. Jehan havia desenvolvido com o passar dos anos uma capacidade de compreensão surpreendente, afinal.
A conversa fluiu normalmente, os dois tentando de qualquer forma desviar a mente do ocorrido no dia anterior.
Quando voltaram ao local de antes, Melisende e Roul já estavam acordados e permaneciam em silêncio, preparando-se para voltar à aldeia. Não pareciam guardar nenhum tipo de rancor, a discussão agora soava como uma memória distante.
Os quatro ajeitaram suas respectivas vestes e rumaram em direção ao povoado sem trocar muitas palavras. Ao chegarem, o ferreiro seguiu seu próprio caminho até sua casa, despedindo-se brevemente dos outros.
O bardo, então, acompanhou o casal até a igreja, onde o padre já estava à espera. Porém, não lhe foi permitido a entrada, de forma que permaneceu do lado de fora, encostado no muro baixo, aflito com o que poderia acontecer lá dentro.
O tempo parecia passar mais lentamente que o normal, os segundos se arrastavam, e Gidie estava cada vez mais temeroso, sem nenhuma notícia sequer. Pôs-se a andar de um lado para o outro, impaciente.
E se a fome que começara a sentir não era um indicativo das horas passando, o sol brilhando alto no céu certamente era.
As pessoas passavam na rua como de costume, parecendo ter esquecido completamente a execução pública que haviam presenciado um dia antes. Afinal, não era um acontecimento tão incomum assim, e os afetados eram quase sempre apenas os familiares e amigos do condenado. Mesmo estes costumavam evitar deixar transparecer a tristeza, com medo das consequências.
O bardo sentiu o estômago roncar, mas assim que decidiu procurar algo para comer, as portas da igreja se abriram, revelando Jehan e Melisende. O casal foi ao encontro de Gidie, parecendo trazer boas notícias pelas expressões em seu rosto.
— Eu fui curada! — Anunciou a camponesa, tentando conter a emoção.
E então, o bardo envolveu os dois em um abraço apertado, deixando escapar um suspiro de alívio. Os camponeses retribuíram o abraço, animados, e por um breve momento, o presente era o mais importante.
Gidie acompanhou os dois até a taverna, onde se permitiram, pela primeira vez em muito tempo, desfrutar de uma boa refeição, oferecida pela irmã de Melisende. Eles sabiam, porém, que era uma escapatória momentânea, e logo a angústia tomaria conta de seus emocionais novamente. Mas ali, naquela hora, a cura da camponesa e a esperança de uma nova vida era o que importava.
As horas pareciam minutos, e os segundos voavam tão rapidamente que era difícil acompanhar. Quando se deram conta, a noite já estava caindo, e os trabalhadores começavam a chegar de suas longas jornadas no campo.
Os três seguiram para fora da taverna, até a porta da casa que agora pertencia ao casal. Gidie forçou um sorriso triste, sentindo o clima entre eles mudar completamente.
— Quanto tempo? — Questionou Jehan, tentando esconder a tristeza.
— Não sei. — Respondeu o bardo com sinceridade. — Depende de meus ouvintes, depende da minha sorte.
— A aldeia não é a mesma sem sua ilustre presença, bardo. — Disse a camponesa em seu tom mais elegante, fazendo uma mesura.
— Encantado com seus elogios, bela dama. — Ele fez uma reverência. — E vejo o quanto Jehan lhe ensinou. Fala quase como alguém da nobreza. E acredite, eu conheci nobres. — Acrescentou, rindo de canto.
— Talvez eu pertença à nobreza e este seja um mero disfarce. — Brincou.
Os três riram da encenação, e logo as risadas deram lugar ao silêncio da despedida. O bardo cumprimentou a camponesa com mais uma reverência, antes de ser puxado para um abraço de Jehan.
— Quando você voltar — começou, decidido, bagunçando os cabelos do mais velho —, teremos mais um membro na família.
Gidie sorriu, esperançoso. Jehan tinha razão. Eles só podiam respeitar a decisão de Cateline e seguir em frente com o plano.
O bardo então afastou-se do camponês, e com um último aceno de cabeça, virou-se em direção à saída da aldeia e seguiu em frente, até sumir completamente na escuridão. Jehan e Melisende se entreolharam, sabendo exatamente o que o outro estava sentindo sem que precisassem dizer uma palavra sequer. Aquele seria um novo começo para os dois, afinal.
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