Uma brisa suave corria da janela erguendo a delicada cortina cor de caqui que se move anemonosamente enquanto um tímido sol teimava em erguer-se do chão até a parede.
Era de fato um belo dia. Não se ouviam os carros na agitada avenida em que Pedro e Marcelo viviam - ou melhor, dividiam suas vidas.
Conheceram-se no colégio em que estudavam nos anos de plástico em 2000, eram ainda garotos, meninos que há pouco tinham aprendido a acertar o vaso enquanto urinavam.
Pedro sempre fora fascinado por Marcelo, já que este fora o primeiro de cabelos ruivos que ele conhecera em sua breve vida ao entrar para a pré-escola.
Pedro tinha pais muito ocupados, pais perdidos que por um lapso, conforme diziam, deixaram-se repetir a experiência de pôr no mundo um pequeno universo de cabelos loiros chamado Pedro. Aliás, Pedro era o mais jovem de seus 2 irmãos tendo uma razoável diferença de 16 anos para o seu irmão do meio, Jorge, de quem Pedro ouviu que nascera das pílulas de farinha que uma certa indústria farmacêutica produziu. Enquanto as crianças ao seu redor sabiam que uma cegonha trazia os bebês, ele tinha absoluta certeza de que um comprimido de farinha que sua mãe tomara fez gerar um menino franzino de sardas e um olhar sempre baixo, de poucas palavras que quase nunca sorria.
A pessoa a quem Pedro mais se afeiçoou foi sua avó Judite que morava com a família no quarto próximo à sala de estar. Viviam numa casa confortável e antiga com móveis de cedro escuros e um cheiro peculiar que variava entre naftalina e sabonete. Judite compreendia Pedro em sua própria introspecção. Ela sabia que alguns garotos implicavam com o seu jeito peculiar de existir e que ele preferia coletar gravetos no recreio a interagir com as outras crianças. Pedro quase sempre era alvo das perversas chacotas de um garoto de 7 anos chamado Carlinhos. Quem era ele para que tratasse alguém tão mal? Perguntava-se Pedro quando o cruel Carlinhos lhe pegava pelo cabelo ondulado e comprido chamando-lhe de estranho. Só porque Carlinhos tinha sete anos poderia intimidá-lo?
Mas Marcelo, com sete anos na época, estava sempre lá… Nesse dia, o franzino Pedro de seis anos tentava soltar-se enquanto os meninos lhe abaixavam as calças.
Seu rosto estava rubro como um carvão em brasa e dos seus olhos brotavam rios de lágrimas desacompanhados de qualquer ruído. Pedro estava preso dentro de si, imerso em incompreensão.
Logo, Marcelo, que geralmente resgatava-o, avança á frente de Pedro e negocia sua liberdade enquanto crianças cruéis riem numa síncope perversa. Marcelo sabia como fazer Carlinho o líder daquela trupe parar. Deu-lhe um chute na canela e em seguida tomou Pedro pela mão e juntos foram para uma das pequenas casas de alvenaria que havia do outro lado do parquinho.
Pedro chorava, e entre as lágrimas via os borrões vermelhos dos cabelo de Marcelo que nada dizia enquanto sentados dentro daquele refúgio olhavam um para o outro.
Pedro não sabia ao certo o que era aquele sentimento que aflorava dentro de si, mas uma vontade imensa de estar perto de Marcelo lhe conduzia. E assim foi.
Estavam sempre juntos. Brincavam depois da escola geralmente na casa de Pedro que era mais próxima do colégio.
Aos 10 anos Pedro cresceu um pouco mais e estava já da altura dos demais garotos, que deixaram de implicar tanto com ele.
Foi numa tarde meio cinzenta que Pedro contou a Marcelo enquanto jogavam videogame que Pedro teria transtorno bipolar. O ano era 2008. Pedro tinha 12 anos e Marcelo 13.
No mês anterior Pedro teve sua primeira crise.
Estavam jogando futebol no recreio e era Marcelo quem escolheria o time. Só quando Marcelo escolhia os jogadores que Pedro não ficava por último. Apesar de terem diminuído as perseguições, Pedro ainda era marcado em razão de sua introspecção. Era tímido e a qualquer momento corava. Só falava o necessário. Era invisível a maior parte do tempo, o que não impedia que hora ou outra fosse motivo de chacota.
O jogo começou. Eram seis garotos em cada canto da quadra. Carlinhos era o capitão do outro time.
Quando então Rafael tocou a bola para Carlinhos, este num chute explosivo mirou o gol, mas por infelicidade a bola acertou em cheio o rosto de Pedro que caiu em lágrimas.
- Por que essa bichinha tá chorando?
Disse Carlinhos.
- Não se mete com ele, Carlinhos!
Marcelo já se colocou à frente de Pedro.
- Já chegou o namoradinho pra defender! Retrucou Carlos.
- É melhor você calar essa boca, seu babaca. Gritou Marcelo.
Carlos nunca enfrentava Marcelo, bastando que levantasse a voz para que ele parasse, mas nem Marcelo sabia explicar o motivo.
Pedro então correu da quadra para o parquinho entrando na casinha que outrora era seu refúgio constante. Quando Pedro sumia, Marcelo era o único que sabia onde encontrá-lo.
Pedro não parava de chorar. Sentado no chão com o rosto enfiado entre as pernas soluçava copiosamente enquanto seu corpo em espasmos se movia.
- Tá doendo? Perguntou Marcelo.
- Não.
- Por que você tá chorando?
- Eu não sei.
- Fala pra mim Pedro, o que tá acontecendo, cara?
Pedro sequer olhou para Marcelo e seu corpo continuava a tremer enquanto um choro alto agora saía de sua garganta.
Marcelo que era mais alto que os garotos de sua idade inclinando-se para não bater a cabeça no teto baixo da pequena casa abraçou Pedro de modo que suas lágrimas e o suor de Marcelo se misturaram. Algo diferente aconteceu. O coração de Marcelo pulsava mais forte e seu peito queimava enquanto um nó em sua garganta o fazia buscar o ar.
Pedro parara de chorar enquanto os cabelos compridos e vermelhos de Marcelo desciam pelo seu ombro. O choro cessou, mas não sua angústia.
Marcelo subitamente soltou o amigo quando percebeu que seu corpo respondeu de forma estranha àquele abraço: seu pênis ereto forçava o tecido do shorts de seu uniforme. Marcelo estava com medo, nunca sentira um desejo tão intenso.
Aliás, ele sabia bem que algo estranho acontecia quando no vestiário via nus os colegas, ou mesmo quando via Pedro se trocar em sua casa. Marcelo teve medo e Pedro continuou a chorar. Não houve outra opção à direção do colégio senão comunicar a seus pais. No caminho de volta a sua casa, o pai de Pedro tentava compreender aquilo, temendo que uma lembrança distante e dolorosa talvez voltasse para assombrá-lo.
Algo estava errado e a avó de Pedro também sabia. Antes do ocorrido fazia 2 noites que Pedro não dormia. Seu pai Ricardo lhe deu uma baita bronca, pois Pedro estava há muitas horas jogando videogame. Bastava que todos em sua casa fossem dormir que ele discretamente voltava a jogar e sequer se sentia cansado. Sua avó Judite já tinha visto algo parecido acontecer com seu filho mais velho Antônio. Antônio cometera suicídio no mesmo dia que completou 19 anos.
Quando o filho tinha a mesma idade de Pedro, Judite começou a perceber que ele não dormia por dias seguidos e quando finalmente conseguia, fazia-o por quase um dia todo. Sua notas começaram a cair e, infelizmente, as doenças mentais na época não eram tão conhecidas e o comportamento de Antônio fora tido no início por rebeldia.
Até que vieram as mudanças de humor e os estágios de depressão. Antônio passou a ser violento e finalmente aos 17 anos fora diagnosticado com transtorno bipolar.
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