Rafaella, ainda olhava pra mim.
Aparentemente minha gaguejante resposta não foi suficiente pra apaziguar o fogo que saltava dos seus olhos. Ops.... acho que agora ela é que devia estar reconsiderando profundamente se ainda havia chance de sermos futuras melhores amigas.
“Sinto muito, muito mesmo?” Disse enquanto forçava um sorriso amarelo e encolhia os ombros.
“Você está dizendo que sente muito, ou perguntando se sente muito?!” Seu tom era mais amigável agora, e podia ver que estava segurando um sorriso.
“Dizendo?” Soltei só para ver qual seria a reação dela, eu sei... estava arriscando minha sorte aqui... mas fui recompensada com um sorriso no final, então acabou valendo a pena. Inspirei fundo e simplesmente despejei a verdade. “Tudo bem, vou falar sério agora, ok? Eu realmente não sei o que está acontecendo comigo... estou me sentindo muito estranha desde que coloquei o pé nesse ônibus... Deve ser um mix de noite mal dormida, estresse por saber de supetão que ia entrar num ônibus onde todos meus chefes estão, ter sido recebida com um discurso em outra língua, ter ficado puta porque ele sabia português, então não sei porque diabos falou comigo em outra língua pra começar e uma preocupação estratosférica com a reação do “grande chefão” ali à minha contratação, que digamos, está me parecendo para lá de suspeita.”
Fui abaixando o meu tom de voz gradativamente ao longo do meu pequeno discurso, assim estava segura quando mais uma vez chamei o chefe-mor pelo seu mais novo e reluzente apelido. E oh-oh... tinha acabado de inventar outro... “chefe-mor”... eu estava bem arranjada... meu bom Deus me proteja nesse novo emprego... dez minutos e já coloquei dois apelidos no babaca... e oh, merda... já estava chamando o cara de babaca sem nem pensar duas vezes... é isso... eu estava ferrada. Ponto.
“Eu simplesmente não sei o que me deu pra responder do jeito que respondi ao Kali...” Me cortei institivamente lembrando que ele não queria que o chamasse pelo nome completo, e senti meu coração doer só um pouquinho relembrando a situação. “Ao Kal... Normalmente eu não saio flertando com os caras assim... principalmente em um ambiente de trabalho...” E foi só então que a realidade me atingiu como um raio. “Ai meu Deus! Eu. Flertei. Com. Meu Chefe. Eu fiz, não fiz?! Não acredito que eu fiz uma coisa dessas! Eu nunca fiz uma coisa dessas!” O pânico ia aumentando a cada sílaba e minha voz não passava de um fiapo. Olhei nos olhos da Raffaela, e sabia que desespero e arrependimento estavam estampados no meu rosto agora. “Porque eu fiz isso??”
“Tudo bem, tudo bem Cassie. Você precisa respirar fundo agora. Ok? Isso só respire fundo. Devagar. Vai ficar tudo bem, não se preocupe. Eu imagino que você deve estar abalada com tudo isso, em parte...” Ela pausou enquanto suspirava profundamente. “... isso é minha responsabilidade... bem mais do que em parte se eu for totalmente honesta sobre isso tudo. Não se preocupe, ok? Seu emprego está garantido, você ir embora é algo que simplesmente não vai acontecer. Precisamos de você aqui, e o Haaz sabe perfeitamente disso também. Eu vou dar um jeito de amaciar a fera, vai ficar tudo bem.”
Fui me acalmando pouco a pouco enquanto ela conversava comigo, mas ainda havia uma coisa oprimindo meu peito.
“ E sobre o Kali...” Droga, eu precisava me corrigir de uma vez por todas com relação a isso.
“Sinto muito Cassie.” Ela me cortou antes que eu pudesse me corrigir. “Não fiquei irritada com você pelo motivo que você acha... não temos esse tipo de mentalidade limitada que proíbe as pessoas de se relacionarem só porque trabalham juntas... odeio esse tipo de hipocrisia.” Ela bufou demonstrando toda sua impaciência com relação ao assunto. “É só que... claramente você viu que não nos damos muito bem, não é? E...”
“Vocês dois já tiveram algo?” Não consegui impedir as palavras de saltarem da minha boca, cortando Raffaela no meio da sua explicação e me senti totalmente envergonhada. Não conseguia acreditar nisso! Mal tinha conversado com o cara e já estava agindo como uma maluca insana desmiolada?!
Ela olhou espantada pra mim... e respondeu tão rápido quanto uma mola.
“O quê?! Não!! Mil vezes não! Jesus!” Ela se virou para mim, sentando sobre uma das pernas dobradas e segurou minhas mãos com delicadeza, respirou fundo mais uma vez e disse com cuidado, alto o suficiente apenas para que eu ouvisse. “Ele não é uma pessoa muito confiável Cassie. A maior parte do tempo parece uma bomba relógio prestes a explodir e no restante do tempo, ele explode. Foi impossível não perceber que rolou alguma coisa entre vocês, o que me surpreendeu pra caramba porque, nessa minha vida, nunca ouvi ele usar aquele tom com ninguém!” Ela ficou calada por uns segundos, remoendo algo e então continuou. “Acho que foi meu instinto de proteção que aflorou... fiquei preocupada por você... não consigo imaginar que ele se interessar por você seja uma coisa boa... entende?! Seria como colocar um gatinho com uma naja e esperar o melhor.”
“Vou chutar que nessa versão, eu sou o gatinho?!” Ela apenas revirou os olhos e bufou delicadamente como uma forma de ressaltar o quanto esse fato era indiscutível.
Fiz que sim com a cabeça, meu peito inundado por um misto de alívio e tristeza... e eu não conseguir sequer mentir pra mim mesma sobre isso... o alívio vinha do fato de que eles nunca tiveram nada e a tristeza... a tristeza era por ele.
A Cassie “com sede de aventura” rosnava baixinho em algum lugar do meu cérebro dizendo que ela ia mostrar quem era a “porra” do gatinho. Mas decidi prestar atenção em outras coisas.
“Obrigada...” Disse sinceramente, mas não conseguindo a olhar nos olhos, por alguma razão desconhecida. “Você com toda certeza o conhece melhor que eu... eu vou... manter uma distância segura.” Finalizei com um arremedo de sorriso.
O que eu não sabia era se ia conseguir manter essa promessa...
Claro, não estaríamos em um lugar pequeno e além de todo o time de caras no ônibus ainda haviam os outros empregados do Health Center, haveriam os hóspedes, os atendimentos... já tinha uma agenda cheia logo na primeira semana... eu sempre poderia caminhar na praia, dar uma fugida pra conhecer as outras praias da ilha nos meus dias de folga...
O que não me faltavam eram coisas pra fazer, com certeza... mas tinha aquela sensação de fundo que não iria ser tão simples manter distância dele.
Primeiro porque algo me dizia que ele ia acabar se aproximando outra vez...
Segundo, porque talvez eu acabasse não resistindo à me aproximar dele outra vez.
E terceiro... tinha uma mini-cassie realmente enfurecida que queria provar que não era a porcaria de um gatinho!
Ficamos alguns minutos em silêncio, ao que parecia nós duas estávamos perdidas em nossos próprios pensamentos e preocupações. Meu olhar acabou indo parar na janela e na paisagem que passava rapidamente por ela. Seguíamos pela beira-mar, uma vista panorâmica da costa, os pássaros voando ou pousados nas rochas negras que despontavam do mar agitado.
Não havia rastro de nuvens no céu azul, embora o vento parecesse estar razoavelmente forte pelo movimento das folhas no topo das palmeiras existentes em toda a larga avenida. Fiquei com vontade de abrir a janela, nem que fosse apenas uma pequena fresta para poder sentir o cheiro do oceano... olhei em volta, procurando ao redor de toda a moldura da janela, mas não encontrei nada. O ônibus era de um modelo desses novos, com grandes janelas de vidro que não podiam ser abertas e com um sistema congelante de ar condicionado. Por sorte ele parecia estar ligado apenas no mínimo.
Um suspiro desejoso escapou dos meus lábios e acabou chamando a atenção da Raffaela, que me lançou um olhar questionador. Dei um pequeno sorriso e apontei o mar com o dedo indicador.
“Queria sentir o cheiro do mar. Fazem anos que não vou à praia.”
Ela acenou com a cabeça entendendo minha frustração.
“Vamos chegar logo... podemos dar uma caminhada no final da tarde se ainda quiser... deixei sua agenda de hoje e de amanhã livres para que você tivesse um tempinho para se ajustar e conhecer tudo lá no Health center. Não acho que a água vai estar quente o suficiente para um mergulho, a temperatura do mar aqui no sul é bem mais fria que nos outros lugares... mas com certeza o tempo vai estar quente o bastante para podemos molhar os pés e caminhar descalças... o que acha?”
O quadro que imaginei foi tão perfeito que sorri de lado a lado e me permiti ter esperanças de que tudo ia se resolver bem.
“Vou adorar. Obrigada.”
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